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quarta-feira, 19 de setembro de 2018

A TESE PAULINA DA JUSTIFICAÇÃO SOMENTE PELA FÉ EXCLUI O VALOR DAS OBRAS EM SEU PAPEL DE JUSTIFICAR, TIDAS POR JUSTAS AOS OLHOS DE DEUS EM VISTA DA OBRA PERFEITA DE CRISTO POR NÓS

Portanto, chego ao segundo gênero de passagens, no qual jaz a principal dificuldade. Paulo nada mais sólido tem para provar a justiça da fé do que o que escreve a respeito de Abraão: sua fé lhe foi imputada para justiça [Rm 4.3; Gl 3.6]. Quando, pois, se diz que o feito exibido por Finéias lhe fora imputado para justiça [Sl 106.31], o que Paulo contende acerca da fé, nos é lícito arrazoar no que respeita às obras. Conseqüentemente, nossos adversários, como se já pudessem dar-se por consumado, estabelecem que, na verdade, sem a fé não somos justificados, porém nem somos justificados por só ela, pois as obras é que completam nossa justiça. Aqui eu insto com os piedosos que, se sabem que a verdadeira regra da justiça unicamente da Escritura se deve buscar, que ponderem comigo religiosa e seriamente como, sem cavilações, é possível conciliar corretamente consigo a própria Escritura. Como se Paulo soubesse que a justificação pela fé é um refúgio para aqueles que são destituídos de justiça própria, ele infere ousadamente que todos quantos são justificados pela fé estão excluídos da justiça proveniente das obras. Uma vez que, porém, é evidente que essa justificação é comum a todos os fiéis, com igual confiança daqui Paulo estabelece que ninguém é justificado pelas obras, senão que, antes, é justificado sem nenhuma corroboração das obras. Entretanto, uma coisa é discutir o que por si mesmas valham as obras; outra, em que lugar elas devem ser tidas após ser estabelecida a justiça pela fé. Se há de fixar valor às obras em função de sua dignidade, dizemos que elas são indignas de ser apresentadas ante a vista de Deus. Por isso o homem não tem obra alguma pela qual gloriar-se perante Deus. Daí, despojado de todo e qualquer auxílio de obras, ele é justificado unicamente pela fé. Esta, na verdade, é nossa definição de justiça: que, recebido à comunhão de Cristo, o pecador é pela graça reconciliado com Deus, enquanto que, purificado por seu sangue, obtém a remissão dos pecados e vestido de sua justiça, como se fosse a sua própria, seguro se mantém diante do tribunal celeste. Preposta a remissão dos pecados, as boas obras que ora se seguem têm outra estimativa além de seu próprio mérito, visto que tudo quanto nelas há de imperfeito é coberto pela perfeição de Cristo; tudo quanto de nódoas ou imundícies há é purificado pela pureza dele, para que não venha à perquirição do juízo divino. Portanto, obliterada a culpa de todas as transgressões pelas quais os homens são impedidos de apresentar algo que seja aprazível a Deus, sepultado o vício da imperfeição que também costuma aviltar as boas obras, são consideradas justas as boas obras que são feitas pelos fiéis; ou, o que equivale ao mesmo, lhes são imputadas para justiça.

João Calvino