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segunda-feira, 24 de setembro de 2018

NATUREZA E CONTEÚDO DA ORAÇÃO PESSOAL, E QUE DEVE ESTAR POLARIZADA NA SÚPLICA E NA AÇÃO DE GRAÇAS

Mas, ainda que a oração se restrinja propriamente a pedidos e súplicas, entretanto é tão grande a afinidade entre petição e ação de graças, que comodamente se podem compreender ambas sob um só nome. E de fato, as espécies de oração que Paulo enumera [1Tm 2.1] recaem sob o primeiro membro desta divisão. Rogando e suplicando, derramamos nossos desejos diante de Deus, pedindo tanto as coisas que contribuem para propagar-lhe a glória e ilustrar-lhe o nome, quanto os benefícios que conduzem ao nosso proveito. Dando graças, com justo louvor celebramos lhe as benevolências para conosco, creditando-lhe à liberalidade tudo quanto de bom nos advém. E assim Davi combinou, a um tempo, estas duas partes: “Invoca-me no dia da necessidade; livrar-te-ei e tu me glorificarás” [Sl 50.15]. Não sem causa, a Escritura prescreve que ambas nos estejam em uso continuamente, pois em outro lugar dissemos que nossa pobreza é por demais grande, mas o próprio fato proclama que de toda parte somos instados e premidos por tantas e tão grandes tribulações, que todos têm sobejos motivos para gemerem e suspirarem constantemente diante de Deus, e de lhe suplicarem sua ajuda e favor. Ora, ainda que estejam livres de coisas adversas, a culpa de seus delitos, bem como os inúmeros assaltos das tentações, então deve aguilhoar ainda aos mais santos a buscarem remédio. Mas, no sacrifício de louvor e de ação de graças não pode haver nenhuma interrupção sem delito, quando Deus não cessa de cumular benefícios, uns sobre os outros, para nos coagir à gratidão, embora lerdos e preguiçosos. Enfim, tão grande e tão profusa prodigalidade de suas benevolências quase nos sufoca, para onde quer que olhes se discernem tantos e tão ingentes milagres seus, de sorte que nunca nos falte argumento e motivo de louvor e ação de graças. E para que essas coisas se expliquem um tanto mais claramente, uma vez que, o que previamente já se provou com exaustão, em Deus se situam toda a nossa esperança e recursos, de modo que, nem a nós nem a todas as nossas coisas podemos ter prosperamente senão por sua bênção, importa que nos recomendemos constantemente, a nós mesmos e a tudo que é nosso. Então, tudo quanto decidimos, falamos, fazemos, decidamos, falemos, façamos debaixo de sua mão e vontade; enfim, sob a esperança de seu auxílio. Pois malditos são por Deus declarados todos os que concebem e executam planos na confiança de si mesmos ou de outro qualquer, os que encetam ou tentam começar algo, à parte de sua vontade e sem invocá-lo [Is 30.1; 31.1; Tg 4.13-16]. E como já se afirmou diversas vezes que ele é investido de justa honra quando é reconhecido como o autor de tudo que é bom, daí se segue que assim se devem receber de sua mão todas essas coisas que devem ser acompanhadas de constante ação de graças, e que nenhuma razão justa há por que façamos uso de suas benevolências não com outra finalidade senão porque provêm de sua liberalidade, senão também para confessá-lo e render-lhe louvor e graças incessantemente. Pois Paulo, quando testifica que “elas são santificadas pela Palavra e pela oração” [1Tm 4.5], acena, ao mesmo tempo, que sem a Palavra e a oração – entendendo realmente a fé, metonimicamente, por Palavra –, todas elas mui longe estão de ser santas e puras. Portanto, ao perceber a liberalidade do Senhor, Davi proclama efusivamente que um cântico novo lhe foi posto na boca [Sl 40.3], de fato indicando com isto que o silêncio é pernicioso, caso deixemos passar sem o justo louvor algum beneficio seu, quando tantas vezes se nos exibe motivo de bendizê-lo sempre que o mesmo se nos depara. Assim também Isaías, proclamando a graça singular de Deus, exorta os fiéis a entoarem um cântico novo e não vulgar [Is 42.10]. Neste sentido, em outro lugar, Davi se expressa assim: “Senhor, abrirás meus lábios e minha boca anunciará teu louvor” [Sl 51.15]. De igual modo, Ezequias e Jonas testificam que este lhes foi o fim da libertação: que celebrem no templo, com cânticos, a bondade de Deus [Is 38.20; Jn 2.9]. Davi prescreve esta mesma norma, generalizadamente, a todos os piedosos. “Que darei ao Senhor”, diz ele, “por tudo o que me conferiu? Tomarei o cálice da salvação e invocarei o nome do Senhor” [Sl 116.12, 13]. E a Igreja segue essa norma, noutro Salmo: “Salva-nos, Senhor nosso Deus, e congrega-nos dentre os gentios, para que louvemos teu nome santo, e nos gloriemos em teu louvor” [Sl 106.47]. Igualmente: “Ele atentou à oração do desamparado, e não desprezará sua oração. Isto se escreverá para a geração futura; e o povo que se criar louvará ao Senhor” [Sl 102.17, 18]. Com efeito, sempre que os fiéis imploram a Deus que faça algo por amor de seu  Nome, com isso confessando que são indignos de obter alguma coisa em seu próprio nome, assim se obrigam a render graças e prometem que este lhes haverá de ser o reto uso da beneficência de Deus: que sejam seus arautos. Assim Oséias, falando da redenção vindoura da Igreja: “Remove”, diz ele, “toda a iniqüidade, e aceita o que é bom; e ofereceremos como novilhos os sacrifícios de nossos lábios” [Os 14.2]. Certamente, os benefícios e mercês que Deus nos fez não só requerem que os honremos com os lábios, mas que naturalmente nos constrangem a amá-lo: “Amo ao Senhor”, diz Davi, “porque o ele ouviu minha voz e minha súplica” [Sl 116.1]. Igualmente, em outro lugar, recitando os socorros que havia sentido: “Eu te amarei, ó Deus, fortaleza minha” [Sl 18.1]. Porque é um fato que os louvores que não procedem desta fonte de amor jamais agradarão a Deus.291 Além disso, é preciso levar em conta esse parecer de Paulo de que as súplicas que não associam à ação de graças são todas elas perversas e viciosas. Pois, assim fala: “vossas petições”, diz ele, “sejam em tudo conhecidas diante de Deus pela oração e súplicas, com ação de graças” [Fp 4.6]. Ora, uma vez que muitos são impelidos por uma espécie de desabafo, descontentamento, impaciência, excessiva dor e medo a murmurar quando oram, o Apóstolo ordena que os sentimentos dos fiéis sejam de tal modo moderados, que mesmo antes que hajam recebido o que almejam, não obstante bendigam jubilosamente a Deus. Porque, se esta correlação deve vigorar em coisas quase contrárias, com este vínculo mais santo Deus nos compele a cantar seus louvares sempre que nos satisfaça aos anelos. Mas, assim como já ensinamos que nossas orações, que de outra maneira seriam poluídas, são consagradas pela intercessão de Cristo, também o Apóstolo, ordenando que através de Cristo ofereçamos sacrifício de louvor [Hb 13.15], adverte que não temos boca suficientemente pura para celebrar o nome de Deus, a menos que o sacerdócio de Cristo intervenha. Do quê concluímos que prodigiosamente enfeitiçados têm sido os homens no papismo, no qual a maior parte fica surpresa de Cristo ser chamado Advogado. Esta é a razão por que Paulo preceitua não apenas orar, mas também render graças sem intermissão [1Ts 5.17, 18; 1Tm 2.1, 8]; com isso querendo dizer que, com toda diligência possível, a todo tempo e em todo lugar, em tudo quanto fazemos e tratamos, todos os nossos desejos estejam levantados a Deus para esperar dele todo o bem e para dar-lhe as graças por tudo quando dele recebemos; já que ele nos dá continuamente motivo para orar a ele e louvá-lo.

João Calvino