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sexta-feira, 21 de setembro de 2018

A LIBERDADE CRISTÃ NÃO PROPICIA OS EXCESSOS DA OSTENTAÇÃO E DO LUXO, COMO PRETENDEM OS ESPÍRITOS IMODERADOS

Deve-se, porém, observar diligentemente que a liberdade cristã é, em todos os seus aspectos, uma realidade espiritual, cuja toda força foi posta em pacificar as consciências atemorizadas diante de Deus, quer estejam inquietas e solícitas quanto à remissão dos pecados, quer estejam ansiosas se porventura obras imperfeitas e poluídas pelos defeitos de nossa carne agradem a Deus, quer sejam atormentadas quanto ao uso das coisas indiferentes. Daí interpretarem-na, pervertidamente, sejam os que com ela acobertam suas vis paixões, para que das boas dádivas de Deus abusem para sua volúpia, sejam os que pensam que nenhuma liberdade há a menos que seja usada diante dos homens, e por isso, em usando-a, nenhuma consideração têm pelos irmãos fracos. Do primeiro modo peca-se em maior medida neste século. Quase não há a quem, em razão de suas posses, seja possível ser suntuoso, a quem não deleite luxuoso esplendor no aparato das ceias, no ornato do corpo, na edificação de moradas, que  não deseje sobressair em eminência por entre os outros em todo gênero de magnificências, que não se lisonjeie esplendidamente em sua opulência pessoal. E tudo isso é defendido sob pretexto de liberdade cristã. Dizem que são coisas indiferentes. Concordo, contanto que alguém as use indiferentemente. Em contraposição, quando são cobiçadas com extrema avidez, quando se gabam orgulhosamente, quando se esbanjam faustosamente coisas que, de outra sorte, eram em si mesmas lícitas, sem dúvida são contaminadas por esses vícios. Entre as coisas indiferentes, esta afirmação de Paulo faz excelente distinção: “Todas as coisas são puras para os puros; para os corruptos e infiéis, porém, nada é puro, visto que sua mente e sua consciência estão corrompidas” [Tt 1.15]. Ora, por que os ricos são amaldiçoados, porque têm sua consolação, estão fartos, agora riem [Lc 6.24, 25], dormem em leitos de marfim [Am 6.4], ajuntam campo a campo [Is 5.8], cujos festinstêm cítara, lira, tamboril e vinho [Is 5.12]? Certamente que marfim, ouro e riquezas são criações boas de Deus, de fato permitidas, destinadas pela providência de Deus ao uso dos homens. Tampouco, jamais se proibiu rir, ou fartarse, ou adicionar novas propriedades às antigas e provindas de herança, ou deleitarse em um concerto musical, ou beber vinho. Certamente que isso é verdadeiro. Mas onde está à mão abundância de coisas para chafurdar-se em deleites, e nestes espojar-se, a mente e o coraçãoinebriar de prazeres do momento e estar sempre anelante por prazeres novos, estas coisas se acham muitíssimo distanciadas do legítimo uso dos dons de Deus. Portanto, ponham fim à cupidez imoderada; ponham fim à prodigalidade descomedida; ponham fim à vaidade e à arrogância, para que, com uma consciência pura, usem com pureza os dons de Deus. Quando o coração se afeiçoar a esta sobriedade, então eles terão a regra do uso legítimo. Por outro lado, se esta moderação estiver ausente, todos os deleites vulgares e comuns serão desmedidos. Ora, isto se diz com verdade: debaixo de uma vestimenta grosseira e rude costuma esconder-se um bom bebedor; debaixo da roupa pobre costuma esconder-se um ânimo de púrpura; e, ao contrário, debaixo da púrpura e da seda às vezes se esconde um coração humilde. E assim, viva cada um em sua condição, ou pobremente, ou modestamente, ou abastadamente, de tal modo que todos se lembrem de que são por Deus alimentados para que vivam, não para que se esbaldem no luxo. E pensem que nisto consiste a lei da liberdade cristã: se aprenderam com Paulo que, nas circunstâncias em que se encontram, devem estar contentes, se sabem tanto ser humildes quanto viver em esplendor, se foram ensinados por toda parte e em todas as coisas a ter fartura, a ter fome, a ter abundância, a sofrer penúria [Fp 4.11, 12].

João Calvino