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quarta-feira, 19 de setembro de 2018

A EFICÁCIA DAS PROMESSAS DIVINAS NÃO SE PRENDE AO MÉRITO DAS OBRAS, E, SIM, À PERFEIÇÃO DA GRAÇA

E então? Porventura as promessas foram dadas para que se desvanecessem sem fruto? Já testifiquei há pouco que este não é meu parecer. Com efeito, afirmo que sua eficácia não estende a nós enquanto tivermos em mira os méritos das obras, as quais, se consideradas em si mesmas, de certa forma, estão abolidas. E assim lemos nesta passagem: “Dei-vos bons preceitos, os quais, quem os cumprir, neles viverá” [Ez 20.11]. O Apóstolo ensina que nenhuma relevância existe se nos detemos nela; porque, nem ainda os mais santos servos de Deus podem fazer o que ela exige, já que todos estão mui longe de cumpri-la e se acham cercados de todos os lados por numerosas transgressões.236 Quando, porém, as promessas do evangelho são substituídas por elas, as quais proclamam a remissão gratuitados pecados, não apenas fazem com que nós mesmos sejamos aceitáveis a Deus, mas também que nossas obras tenham seu favor. Não apenas que o Senhor as tenha como agradáveis, mas ainda que as cumule das bênçãos que, em função do pacto, eram devidas à observância de sua lei. Portanto, confesso que às obras dos fiéis se atribuem as recompensas que, em sua lei, o Senhor prometeu aos cultores da justiça e da santidade, contudo nesta retribuição deve ser sempre considerada a causa que granjeia favor para as obras. Verificamos que, de fato, esta é tríplice. A primeira é que Deus, não olhando para as obras de seus servos, as quais sempre merecem mais reprovação do que louvor, os abraça em Cristo, e interpondo-se somente a fé, os reconcilia consigo à parte da participação das obras. A segunda, que as obras, não as estimando por sua própria dignidade, mercê de sua paterna benignidade e indulgência, lhes imprime certo valor e lhes presta certa atenção. A terceira, Deus acolhe a essas mesmas obras com perdão, sem imputar-lhes qualquer imperfeição, que de tal maneira as poluem que, de outra sorte, seriam computadas mais aos pecados do que às virtudes. E daqui se faz evidente quão profundamente enganados são os sofistas que pensaram haver-se evadido magistralmente a todos os  absurdos, quando dissessem que as obras não valem por sua bondade intrínseca para que mereçam a salvação, mas em razão do pacto que o Senhor, por sua liberalidade, tanto as estimou. Entrementes, não observavam da perspectiva da condição das promessas, o quanto se distanciaram as obras que queriam que fossem meritórias, a menos que as precedesse não só a justificação sustentada somente na fé, mas também a remissão dos pecados, mercê da qual mesmo as boas obras têm necessariamente de ser purificadas de manchas. Dessa forma, das três coisas da divina liberalidade, mercê das quais acontece que são aceitáveis as obras dos fiéis, assinalaram apenas uma; suprimiram as outras duas, e certamente as principais.

João Calvino