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sábado, 22 de setembro de 2018

A IMPROCEDÊNCIA DA OBJEÇÃO DE QUE A ORAÇÃO É SUPÉRFLUA DIANTE DA ONISCIÊNCIA DE DEUS, IMPORTUNA DIANTE DE SUA PROVIDÊNCIA E INÚTIL DIANTE DE SUA LIBERALIDADE, DEMONSTRADA EM SEIS ARRAZOADOS

Mas alguém dirá: Porventura Deus não sabe, mesmo sem que o lembre, não apenas em que aspecto estamos sendo acossados, como também o que nos é conveniente, de sorte que possa parecer de certo modo supérfluo que ele seja incomodado por nossas orações, como se estivesse de olhos cerrados, ou mesmo a dormir, até que seja despertado por nossa voz? Aqueles que, porém, assim raciocinam, não atentam para que fim o Senhor instruiu os seus a orar, pois não ordenou isso propriamente por sua própria causa, mas, antes, pela nossa. Na verdade, por ser justo, Deus quer que lhe seja conferido seu direito, enquanto se lhe dá crédito de tudo quanto os homens anelam e sentem contribuir-lhes para o proveito, e fazem isto compelidos por suas preces. Mas todo o proveito deste sacrifício com o qual é honrado também reverte sobre nós. Daí os santos patriarcas, quanto mais confiadamente exaltavam os benefícios de Deus em relação a eles mesmos, e em relação a outros, tanto mais ardentemente eram incitados a orar. Em confirmação disso nos é suficiente o exemplo de Elias, o qual, seguro do propósito de Deus, depois que prometeu chuva ao rei Acabe, não de forma temerária, porém com a cabeça entre os joelhos, ora ansiosamente, e manda o servo observar sete vezes [1Rs 18.42, 43], não porque sua fé no vaticínio se arrefeça, mas porque sabe que seu dever era depor seus desejos diante de Deus, para que sua fé não fosse sonolenta ou entorpecida. Portanto, ainda que ele vigia por nós e monta guarda sobre nós, míopes e obtusos para com nossas misérias, e vezes até nos socorre sem ser solicitado, entretanto nos é do máximo interesse que seja por nós constantemente implorado, primeiro, para que nosso coração se inflame de sério e ardente desejo de sempre buscá-lo, amá-lo, servi-lo, enquanto nos acostumamos a nos refugiarmos nele em toda necessidade, como em uma âncora sagrada; em segundo lugar, para que nenhuma paixão e nenhum desejo sequer nos suba ao coração, com vergonha de tê-lo por testemunha, enquanto aprendemos a diante de seus olhos colocar todos nossos desejos, e até mesmo a derramar todo nosso coração; em terceiro lugar, para que nos preparemos a receber seus benefícios com verdadeira gratidão de alma e até mesmo com ação de graças, os quais somos por nossa deprecação advertidos de que nos provêm de sua mão [Sl 145.15, 16]; em quarto lugar, para que, havendo conseguido o que buscávamos, persuadidos de que ele respondeu nossos rogos, daqui sejamos levados a mais ardentemente meditar em sua benignidade; em quinto lugar, ao mesmo tempo, com mais profundo deleite abracemos as benesses, as quais reconhecemos que foram obtidas mercê de nossas orações; em sexto lugar, para que, segundo a medida de nossa fraqueza, sua providência nos confirme, em nossas almas, o próprio uso e experiência, enquanto entendemos que ele não apenas promete que jamais nos haverá de faltar, e de seu próprio arbítrio escancara o acesso para invocá lo no próprio e preciso momento da necessidade, mas também tem a mão sempre estendida para ajudar os seus; nem os alenta com palavras, mas os assiste com auxílio sempre presente. À vista destas coisas, o Pai clementíssimo, ainda que jamais durma nem esteja apático, no entanto muitas vezes dá a impressão de quem esteja a dormitar e se mostre apático, para que, assim, a nós, de outra sorte ociosos e indolentes, nos exercite a buscá-lo, a rogar-lhe, a suplicar-lhe, para nosso grande bem. Portanto, procedem com muita insensatez aqueles que, para que da oração revoguem os ânimos dos homens, vociferam dizendo que vã é a providência de Deus com nossas intercessões importunada, a velar no cuidado de todas as coisas, quando não em vão em contrário o Senhor atesta que “ele está próximo a todos que lhe invocam o nome em verdade” [Sl 145.18]. Nada é menos improcedente o que alguns parolam: que é supérfluo o pedido dessas coisas que o Senhor tenha preparado a prodigalizar espontaneamente, quando essas mesmas coisas que nos fluem de sua espontânea liberalidade ele queira que sejam reconhecidas como concedidas às nossas orações. Isso o atestaessa memorável declaração do Salmo, à qual correspondem muitos semelhantes: “Os olhos do Senhor estão voltados sobre os justos e seus ouvidos, para com suas orações” [Sl 34.15; 1Pe 3.12], declaração que de tal modo recomenda a providência de Deus, de seu próprio arbítrio afeita ao cuidado da salvação dos piedosos, que, no entanto, não omite o exercício da fé, mercê do qual a indolência apaga os ânimosdos homens. Velam, pois, os olhos de Deus para que venha em auxílio à necessidade dos cegos, mas, por sua vez, ele quer ouvir nossos gemidos, para que melhor prove seu amor para conosco. E assim verdadeira é uma e outra dessas duas coisas: que o guarda de Israel “não dorme, nem dormita” [Sl 121.4], e não obstante que se faz displicente, como se esquecido de nós, quando nos vê apáticos e mudos.

João Calvino