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segunda-feira, 24 de setembro de 2018

NATUREZA E NECESSIDADE DA ORAÇÃO PARTICULAR E DA ORAÇÃO PÚBLICA E DETURPAÇÕES QUE PRECISAM SER ELIMINADAS

Ainda que se haja de entender esta oração ininterrupta principalmente como sendo de cada pessoa em particular, não obstante de certa forma se refere às orações públicas da Igreja.293 Com efeito, tampouco estas podem ser constantes, nem devem também suceder de outro modo senão segundo a disposição que se convencionou de comum consenso entre todos. Estou de pleno acordo. Ora, daqui não só são ajustadas e estabelecidas horas certas, as quais são indiferentes diante de Deus, porém necessárias aos usos dos homens, para que se atenda à convivência de todos, mas também tudo seja feito na Igreja segundo a formulação de Paulo, “com decência e ordem” [1Co 14.40]. Entretanto, isso não impede que cada Igreja deva, por um lado, estimular-se, reiteradamente, ao uso mais freqüente de orações; por outro, alertada por alguma necessidade maior, se inflame de zelo mais ardente. Contudo, quanto à perseverança na oração, que tem muita afinidade com a constância, se poderá discorrer mais no final deste capitulo. Com efeito, estas coisas nada têm a ver com a repeticiosidade vã] de que Cristo quis nossa interdição [Mt 6.7], pois não proíbe insistir em orações por longo tempo, nem freqüentemente, nem com muito fervor; mas para que não confiemos poder arrancar algo de Deus, aturdindo seus ouvidos com fútil loquacidade, como se ele pudesse ser persuadido à maneira humana. Ora, sabemos que os hipócritas, embora não tomem consciência de que estão tratando com Deus, nas orações desfilam suas pompas não diferentemente que num cortejo triunfal. Aquele fariseu que dava graças a Deus porque não se parecia com os demais [Lc 18.11], na verdade se aplaudia, não disfarçadamente, aos olhos dos homens, como se, por meio da oração, quisesse granjear fama de santidade. Daqui essa  que hoje, por uma razão semelhante, grassa no papismo, enquanto uns gastam o tempo em vão, repetindo as mesmas precezinhas, outros diante do poviléu se ostentam, mercê de longa avalanche de palavras. Uma vez que esta parolice desdenha puerilmente de Deus, não é de admirar que seja proibida à Igreja, a que não ressoe algo aí senão o que é sério e provindo do íntimo do coração. A esta deturpação é também vizinha outra semelhante, a qual Cristo condena ao mesmo tempo, a saber: que, por amor à ostentação, os hipócritas saem em busca de muitas testemunhas, e para orar ocupam antes a praça pública para que suas preces não sejam destituídas do louvor do mundo. Mas como a meta da oração é, em conformidade com o que já expusemos, que nosso espírito se eleve a Deus para bendizê-lo e rogar-lhe socorro, é licito entender disso que suas primeiras partes foram postas na mente e no coração, ou, antes, que a oração em si é, propriamente, uma disposição do íntimo do coração, que se derrama e se expõe diante de Deus, o perscrutador dos corações [Rm 8.27]. Daí, como já foi dito, o Mestre celestial, quando quis ditar a melhor regra de orar, ordenou que entremos no quarto e, fechada a porta, oremos a nosso Pai em secreto, para que nosso Pai, que vê em secreto, nos ouça [Mt 6.6]. Com efeito, quando os hipócritas nos expulsam do templo, os quais, mercê de ambiciosa ostentação de preces, aliciam o favor dos homens, ao mesmo tempo acrescenta o que seja melhor, isto é: entrar no quarto e aí orar com porta fechada. Com estas palavras, como eu as interpreto, nos ensinou a buscarmos um lugar retirado que nos ajude a que, com toda reflexão, desçamos ao nosso coração e nele penetremos fundo, prometendo o Mestre que Deus, de quem nossos corpos devem ser templo, estará perto das disposições de nosso íntimo [2Co 8.16]. De fato, ele não quis negar que também convém orar em outros lugares, mas põe em evidência que a oração é algo secreto, não só que esteja acima de tudo situada no íntimo, como também que sua tranqüilidade requer que se ponha longe de todas as turbas de preocupações. Portanto, também o próprio Senhor, quando quisesse devotar-se mais intensamente às orações, não era sem razão que se retirava para um lugar solitário, longe do tumulto dos homens. Mas ele fazia isso para que, com seu exemplo, nos lembrasse que não se devem negligenciar estes auxílios, mercê dos quais nosso ânimo, por si mesmo demasiado escorregadio, mais se aplica ao sério esforço da oração. Ao mesmo tempo, entretanto, visto que não se abstinha de orar em meio a uma turba de homens, se a qualquer tempo assim se lhe deparava ocasião, assim também, em todos os lugares nos quais se fazia necessário, que ergamos mãos puras em oração [2Tm 2.8]. E, ainda muito mais, assim se deve considerar: qualquer um que se recusa a orar na sacra assembléia dos piedosos, não sabe coisa alguma como orar individualmente, nem em lugar isolado, nem em casa. Por outro lado, aquele que negligencia orar só e em particular, por mais assiduamente que freqüente as reuniões públicas, aí engendra apenas preces cheias de vento, porquanto mais respeito presta à opinião dos homens do que ao secreto juízo de Deus. Enquanto isso, para que as orações comuns das Igreja não sofressem nenhum desprezo, Deus outrora as adornou de esplêndidos títulos, especialmente onde chamou ao templo casa de oração [Is 56.7; Mt 21.13; Mc 11.17; Lc 19.46]. Ora, mercê desta expressão, Deus também ensinou que a parte principal de seu culto é o ofício da oração, e para que nele os fiéis se exercitassem com um só sentimento, o templo lhes fora alçado como uma bandeira. Ainda se adiciona uma solene promessa: “A ti, ó Deus, espera o louvor em Sião, e a ti se pagará o voto” [Sl 65.1]; palavras com as quais o Profeta sugere que as orações da Igreja nunca são ineficazes, porquanto Deus provê sempre a seu povo sobejo motivo de cantar com triunfo. Mas, se bem que as sombras da lei cessaram, contudo, porque Deus quis com esta cerimônia fomentar também entre nós a unidade da fé, não há dúvida de que a nós pertença a mesma promessa, a qual Cristo não só sancionou com sua boca, mas Paulo também ensina ser de vigência perpétua.

João Calvino