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quinta-feira, 20 de setembro de 2018

TIAGO E PAULO USAM O TERMO JUSTIFICAÇÃO EM ACEPÇÕES DIVERSAS: AQUELE REPORTANDO-SE AO ASPECTO DO TESTEMUNHO DA FÉ (PENHOR DE JUSTIFICAÇÃO); ESTE, AO ASPECTO DA IMPUTAÇÃO (MEIO DE JUSTIFICAÇÃO)

Ainda não teremos atingido a meta, a menos que discutamos também o outro paralogismo: se de fato Tiago põe uma parte da justificação nas obras. Caso queiras que Tiago concorde não apenas com as demais Escriturãs, mas também consigo próprio, é necessário que tomes o termo justificar em outra acepção além da acepção de Paulo. Porquanto Paulo diz que somos justificados quando, obliterada a lembrança de nossa justiça pessoal, somos reputados por justos. Se Tiago tivesse olhado nessa direção, ele teria citado diversamente esta afirmação da parte de Moisés: “Abraão creu em Deus” etc. [Tg 2.23; Gn 15.6]; pois assim arrazoa: Abraão alcançou a justiça pelas obras, porque, ante a ordem de Deus, não hesitou em imolar o filho [Tg 2.21], e assim se cumpriu a Escritura que diz: “e Abraão creu em Deus e isso lhe foi imputado como justiça” [Tg 2.23]. Se é absurdo que o efeito seja anterior à sua causa, ou Moisés, nessa passagem, testifica falsamenteque a fé foi imputada a Abraão para justiça, ou dessa obediência que exibiu em oferecendo a Isaque ele não mereceu a justiça. Antes que Ismael fosse concebido, que já era adolescente quando Isaque nasceu, Abraão fora justificado por sua fé. Como, pois, diremos que ele granjeara para si a justiça em virtude de uma obediência, quando esta veio depois? Daí, ou Tiago inverteu incorretamente a ordem, o que não é justo pensar, ou não quis dizer que ele foi justificado, como se merecesse ser considerado justo. E então? Por certo, é evidente que ele está falando de declaração de justiça, contudo, não de sua imputação, como se quisesse dizer: Aqueles que são justos mercê de verdadeira fé, esses provam sua justiça através da obediência e das boas obras, não mediante um espectro desnudo e imaginário de fé. Em suma, Tiago não está discutindo de que maneira são justificados, mas está exigindo dos fiéis uma justiça que produza obras. E como Paulo declara que somos justificados sem o concurso das obras, assim aqui Tiago não admite que sejam tidos por justos os que não produzem boas obras. A análise deste escopo nos desvencilhará de toda dificuldade, porque nossos adversários se enganam, sobretudo, ao crerem que Tiago determina o modo como os homens são justificados, quando outra coisa não busca senão demolir a fútil segurança daqueles que, para escusar a negligência das boas obras, se gloriam falsamente no título de fé. Portanto, de todos modos que torçam as palavras de Tiago, nada expressarão senão duas proposições: que um inútil simulacro de fé não justifica, e que o fiel, não contente com tal mistificação, declara sua justiça com boas obras.

João Calvino