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quinta-feira, 27 de setembro de 2018

DA ETERNA ELEIÇÃO, PELA QUAL DEUS A UNS PREDESTINOU PARA A SALVAÇÃO, A OUTROS PARA A PERDIÇÃO

PROCEDÊNCIA, RAZOABILIDADE E IMPORTÂNCIA DA DOUTRINA DA ELEIÇÃO E PREDESTINAÇÃO, QUE A ESPECULAÇÃO EXPLORA E CONFUNDE

Mas, já que o pacto de vida não é pregado entre todos os homens igualmente, e entre aqueles a quem é pregado não acha a mesma receptividade, quer qualitativa, quer continuativamente, nessa diversidade se manifesta a admirável profundeza do juízo divino. Pois não há dúvida de que esta variedade serve também ao arbítrio da eterna eleição de Deus. Porque, se é notório que pelo arbítrio de Deus suceder que a salvação é oferecida gratuitamente a uns, enquanto que outros são impedidos de seu acesso, aqui prontamente emergem grandes e árduas questões, as quais não podem ser explicadas de outra forma, se as mentes pias têm por definido o que se impõe manter a respeito de eleição e predestinação. Questão assaz intrincada, como parece a muitos, porquanto pensam não ser de modo algum coerente que da multidão comum dos homens uns sejam predestinados à salvação, outros à perdição. Claramente se verá, pela argumentação que empregaremos nesta matéria, que são eles que, por falta de discernimento, se enredam. Acresce ainda que na própria escuridão que aterra se põe à mostra não só o lado útil desta doutrina, como também seu fruto dulcíssimo. Jamais haveremos de ser claramente persuadidos, como convém, de que nossa salvação flui da fonte da graciosa misericórdia de Deus, até que sua eterna eleição se nos faça conhecida, a qual, mercê deste contraste, ilumina a graça de Deus, a saber, que ele não adota à esperança da salvação a todos indiscriminadamente; ao contrário, ele dá a uns o que nega a outros. É notório quanto a ignorância deste princípio diminui da glória de Deus, e quanto prejudica a verdadeira humildade. Com efeito, o que é tão necessário que se conheça Paulo nega que se possa conhecer, a não ser que Deus, descartando inteiramente a consideração pelas obras, elege aqueles que para si decretou. “Assim, pois, também agora neste tempo ficou um remanescente, segundo a eleição da graça. Mas se é por graça, já não é pelas obras; de outra maneira, a graça já não é graça. Se, porém é pelas obras, já não é mais graça; de outra maneira a obra já não é obra” [Rm 11.5, 6]. Se para fazer patente que a salvação não nos provém de outra parte, senão da mera liberalidade de Deus, temos que retroceder-nos à origem da eleição, aqueles que querem extinguir isto, quanto lhes é possível, malignamente obscurecem o que se devia celebrar com magnificência e de bocas cheias e extirpam a própria raiz da humildade. Paulo atesta claramente, quando a salvação de um remanescente do povo é atribuída à eleição da graça, que afinal se conhece então que Deus preserva por seu mero beneplácito aqueles a quem quer, e que não lhes paga nenhum salário, porquanto nenhum lhes pode dever. Aqueles que fecham as portas para que alguém não ouse dar-se ao gosto desta doutrina, fazem aos homens não menor agravo que a Deus, porquanto nenhuma coisa fora desta será suficiente para que nos humilhemos como devemos, nem tampouco sentiremos deveras quão obrigados estamos para com Deus.311 Com efeito, em nenhum outro lugar há sustentáculo à firme confiança, como o diz também Cristo, porque, para assegurar-nos e livrar-nos de todo temor em meio a tantos perigos, insídias e conflitos mortais, e para fazer-nos sair vitoriosos promete que nenhum perecerá de quantos o Pai lhe confiou [Jo 10.28, 29]. Disto concluímos que todos aqueles que não se reconhecem parte do povo de Deus são miseráveis, pois sempre estão num contínuo tremor; e por isso todos aqueles que fecham seus olhos e não querem ver nem ouvir estes três frutos que apontamos e se propõem a derrubar este fundamento, pensam de forma totalmente equivocada e fazem grande dano a si e a todos os fiéis. E ainda mais, afirmo que daqui nasce a Igreja, a qual, de outra sorte, como corretamente ensina Bernardo,312 não poderia ser achada, nem ser conhecida entre as criaturas, visto que, de modo algum admirável, jaz escondida no recesso da bem-aventurada predestinação e entre a massa miserável dos homens. Antes, porém, de entrar na matéria propriamente dita, tenho que abordar previamente, em dois lugares distintos, duplo gênero de homens. A discussão acerca da predestinação, quando já por si mesma é matéria um tanto enredilhada, a curiosidade dos homens a torna assaz confusa e inclusive perigosa, visto que o entendimento humano não se pode refrear nem deter-se, por mais limites e termos que se lhes assinale, para não extraviar-se por caminhos proibidos e elevar-se com empenho, se fosse possível, de não deixar segredo de Deus sem revolver e esquadrinhar. Quando vemos a muitos, a cada passo, arrojar-se a esta audácia e improbidade, e entre esses alguns doutro modo não maus, importa que sejam, em tempo oportuno, advertidos sobre qual lhes é nesta parte a medida de seu dever. Portanto, primeiro que se lembrem de que, enquanto investigam a predestinação, tentam penetrar nos íntimos recessos da divina sabedoria, na qual, se alguém segura e confiantemente irrompe, tampouco conseguirá saciar-se com que sua curiosidade, e estará a adentrar um labirinto do qual não achará nenhuma saída. Pois não é justo que impunemente procure o homem devassar as coisas que o Senhor quis que fossem escondidas em si próprio e esquadrinhe desde a própria eternidade a sublimidade da sabedoria que ele quis que seja adorada e não que seja apreendida, para que também por meio dela ele viesse a ser admirado. Os desígnios secretos de sua vontade que determinou devessem ser-nos desvendados, esses no-los revelou em sua Palavra. Mas determinou que é bom comunicar-nos tudo aquilo que via ser nos necessário e proveitoso.

João Calvino