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segunda-feira, 27 de agosto de 2018

O ARREPENDIMENTO SUSCITADO POR SINCERO E REAL TEMOR DE DEUS, ANTEVISTO O JUSTO, PORÉM INCOERCÍVEL, JUÍZO EM QUE LHE INCORRE O PECADOR

O segundo ponto era que ensinamos que o arrependimento procede do real temor de Deus. Pois, antes que a mente do pecador se incline ao arrependimento, importa seja ela despertada pelo senso do juízo divino. Quando, porém, este senso se tenha fixada profundamente, de que Deus um dia haverá de subir ao seu tribunal a fim de exigir a razão de todas as palavras e feitos, não permitirá que o mísero ser humano descanse, nem que respire um instante, sem que o aguilhoe constantemente a meditar em outro modo de vida em que possa postar-se em segurança diante desse Juízo. Daí, enquanto exorta ao arrependimento, a Escritura faz freqüente menção do juízo, como em Jeremias [4.4]: “Para que não saia, porventura, minha ira como fogo, e não haja quem a extinga, em razão da maldade de vossas obras.” E no sermão de Paulo aos atenienses [At 17.30, 31]: “E, com efeito, embora Deus tenha deixado passar até agora os tempos dessa ignorância, anuncia agora aos homens que por toda parte todos se arrependam, visto que ele fixou um dia em que haverá de julgar o mundo todo com eqüidade”; e em muitos outros lugares. Por vezes a Escritura declara que Deus é Juiz mediante castigos já infligidos, para que os pecadores ponderem consigo mesmos que, a menos que se arrependam em tempo, coisas piores os ameaçam. Os capítulos 20 e 29 de Deuteronômio são ricos em exemplos. Não obstante, uma vez que a conversão começa do horror e ódio ao pecado, por isso o Apóstolo faz a “tristeza que é segundo Deus” [2Co 7.10] a causa do arrependimento. Mas, ele chama tristeza segundo Deus quando temos não só horror ao castigo, mas também odiamos e execramos ao próprio pecado, ao compreendermos que ele desagrada a Deus. Nem é de admirar, porque, a não ser que sejamos severamente espicaçados, não nos seria possível corrigir a indolência da carne. De fato, ao seu embotamento e apatia não bastariam simples estugadas, a não ser que Deus penetre mais fundo, ostentando suas varas. Além disso, adiciona-se a contumácia que, para ser quebrada, se faz necessário que se use como que marretas. Portanto, a severidade de que Deus faz uso ao ameaçar-nos é provocada nele pela depravação de nossa natureza, porquanto ele em vão seduziria com brandura aos que estão a dormir. Deixo de mencionar as provas disto, as quais ocorrem reiteradamente na Escritura. Ainda por outra razão o temor de Deus é o princípio do arrependimento, a saber, que embora a vida do homem seja repleta de todas as classes de virtudes, a não ser que ela se volva para o culto de Deus, poderá, sem dúvida, ser louvada pelo mundo, mas será pura abominação no céu, uma vez que a parte capital da justiça é render a Deus seu direito e honra, dos quais ele é impiamente fraudado quando não temos o propósito de nos sujeitar a seu governo.

João Calvino

O ARREPENDIMENTO, VOLTA PARA DEUS, TEM MUDANÇA IMPLÍCITA REAL DE ALMA E CORAÇÃO

Contudo, antes de prosseguirmos avante, será vantajoso expor mais claramente a definição proposta por nós, na qual se devem considerar especialmente três pontos. Primeiro, quando o chamamos a volta da vida para Deus, requeremos uma transformação não apenas nas obras exteriores, mas inclusive na própria alma, a qual, quandoé despojada de sua velha natureza, então, afinal, em si produz os frutos de obras que correspondam à sua renovação. Enquanto o Profeta quer expressar isto, ordena àqueles a quem chama ao arrependimento que façam para si um coração novo [Ez 18.31]. Donde, a fim de mostrar como os israelitas deviam voltar sinceramente para o Senhor, tocados de arrependimento, mais amiúde ensina Moisés que deviam fazer isso “de todo o coração e de toda a alma” [Dt 6.5; 10.12; 30.2,6, 10], expressão que vemos constantemente repetida pelos profetas; e ao chamá-lo “circuncisão do coração” [Dt 10.16; 30.6], mexe com os afetos interiores. Entretanto, não há nenhuma passagem na qual melhor se perceba qual é a real propriedade do arrependimento do que no quarto capítulo de Jeremias: “Se voltares, ó Israel”, diz o Senhor, “volta para mim. Preparai para vós o campo de lavoura, e não semeeis entre espinhos. Circuncidai-vos ao Senhor, e tirai os prepúcios de vosso coração” [Jr 4.1, 3, 4]. Pode-se ver como ele declara que, para viver honestamente, é necessário desarraigar a impiedade do íntimo do coração. E para tocá-los mais vividamente, os adverte que é Deus com quem hão de tratar, com o qual de nada serve andar com tergiversações, pois ele aborrece no homem a duplicidade do coração.21 [Tg 1.7, 8]. Por esta causa, ri-se Isaías [58.6] dos baldados esforços dos hipócritas, que se empenhavam, de fato excessivamente, em desenvolver o arrependimento exterior expresso em cerimônias; mas, enquanto isso, não se preocupavam em desatar os feixesde iniqüidade com os quais mantinham atados os pobres; onde mostra, ademais, de forma admirável, em que se situa propriamente o arrependimento não fingido.

João Calvino

O ARREPENDIMENTO PODE SER DEFINIDO COMO A VOLTA PARA DEUS, EM FÉ, À QUAL É INDISSOLUVELMENTE ASSOCIADO, PORÉM INCONFUNDIVELMENTE DISTINTO

Se bem que estas coisas todas são verdadeiras, contudo o termo arrependimento, em si, até onde posso alcançar das Escrituras, deve ser tomado em acepção diferente. Visto que querem confundir a fé com arrependimento, se põem em conflito com o que Paulo diz em Atos [20.21]: “Testificando a judeus e gentios o arrependimento para com Deus e a fé em Jesus Cristo”, onde enumera arrependimento e fé como duas coisas diversas. E então? Porventura pode o verdadeiro arrependimento subsistir à parte da fé? Absolutamente, não. Mas, embora não possam ser separados, devem, no entanto, ser distinguidos entre si. Da mesma forma que a fé não subsiste sem a esperança, e todavia fé e esperança são coisas diferentes, assim o arrependimento e a fé, embora sejam entre si ligados por um vínculo perpétuo, no entanto demandam que permaneçam unidos, e não confundidos.
Certamente não ignoro que sob o termo arrependimento se compreende toda a conversão a Deus, da qual a fé é parte não mínima; contudo, claramente se verá em que sentido se afirma isto, quando se explica sua força e natureza. O termo arrependimento foi, para os hebreus, derivado da palavra que significa expressamente conversão ou retorno;para os gregos, ele veio do vocábulo que quer dizer mudança da mente e de desígnio. À etimologia de um e outro desses dois termos não se enquadra mal o próprio fato, cuja síntese é que, emigrando de nós mesmos, nos voltemos para Deus; e, deposta a mente antiga, nos revistamos de uma nova. Isto posto, pelo menos em meu modo de julgar, não se poderá assim definir mal o arrependimento: é a verdadeira conversão de nossa vida a Deus, procedente de um sincero e real terror de Deus, que consiste da mortificação de nossa carne e do velho homem e da vivificação do Espírito. Nesse sentido devem ser tomadas todas as alocuções com que ou os profetas outrora ou os apóstolos, mais tarde, exortavam os homens de seu tempo ao arrependimento. Pois, estavam pleiteando apenas que, confundidos por seus pecados e trespassados pelo medo do juízo divino, se prostrassem e se humilhassem diante desse contra quem haviam se revoltado e, em verdadeiro arrependimento, a seu reto caminho se volvessem. Por isso usaram esses termos indiscriminadamente, com o mesmo sentido: converter-se ou volver-se para o Senhor, arrepender-se e fazer penitência. Quando até mesmo a História Sagrada diz que arrepender-se é ir após Deus, a saber, quando oshomens, que não tinham a Deus em mínima conta, se esbaldavam em seus deleites, agora começam a obedecer-lhe à Palavra e se põem à disposição de seu Chefe para avançar aonde quer que ele os houver de chamar. E JoãoBatista e Paulo usaram da expressão produzir frutos dignos de arrependimento [Lc 3.8; At 26.20; Rm 6.4] em lugar de levar uma vida que demonstre e comprove, em todas as ações, arrependimento desta natureza.

João Calvino

ARREPENDIMENTO SEGUNDO A LEI, E ARREPENDIMENTO SEGUNDO O EVANGELHO

Outros, vendo que este vocábulo é empregado na Escritura com variada acepção, determinaram duas formas de arrependimento, às quais, para que as distinguissem com algum traço, a uma chamaram arrependimento legal, pelo qual o pecador, ferido pelo cautério do pecado e triturado pelo terror da ira de Deus, sente-se como que enredado nesta inquietação, nem dela consegue desvencilhar; à outra chamaram arrependimento evangélico, pelo qual o pecador, na verdade, gravemente aflito em si, entretanto se ergue mais alto e recebe a Cristo como o remédio de sua ferida, o consolo de seu terror, o porto de refúgio de sua miséria. Do arrependimento legal invocam por exemplos Caim, Saul, Judas, cujo arrependimento, embora no-lo relate a Escritura, dá ela a saber que, reconhecida a gravidade de seu pecado, se deixaram dominar-se de pavor da ira de Deus, mas, a Deus cogitando apenas como Vingador e Juiz, neste sentimento realmente falharam. Portanto, o arrependimento destes outra coisa não foi senão como que uma antecâmara do inferno, na qual, havendo já entrado nesta vida, começaram a sofrer os castigos perante a ira da majestade de Deus. Vemos o arrependimento evangélico em todos os que, em si espicaçados pelo aguilhão do pecado, porém soerguidos e refeitos pela confiança na misericórdia de Deus, voltaram-se para o Senhor. Profundamente aterrado ficou Ezequias ao receber o anúncio de sua morte; mas, a chorar, orou [2Rs 20.2; Is 38.2], e tendo firmemente visualizado a bondade de Deus recobrou a confiança. Conturbados foram os ninivitas pela horrível ameaça de destruição; mas, vestidos de saco e cinza, oraram, esperando que o Senhor pudesse demover-se e ser desviado do furor de sua ira [Jn 3.5, 9]. Davi confessou que havia pecado sobremaneira, recenseando o povo, porém acrescentou: “Remove, Senhor, a iniqüidade de teu servo” [2Sm 24.10]. Repreendendo-o Natã, ele reconheceu o crime de adultério e se prostrou diante do Senhor; mas, ao mesmo tempo, esperou seu perdão [2Sm 12.13, 16]. Tal foi o arrependimento dos que sentiram a compunção de seu coração ante a pregação de Pedro, contudo, confiados na bondade de Deus, acrescentaram: “Que faremos, irmãos?” [At 2.37]. Tal foi também o arrependimento do próprio Pedro, que chorou real e amargamente, entretanto não cessou de esperar [Mt 26.75; Lc 22.62].

João Calvino

AS DUAS FACES DO ARREPENDIMENTO: CONTRIÇÃO E VIVIFICAÇÃO

Certos homens doutos, porém, até muito antes destes tempos, como, em relação ao arrependimento, quisessem falar singela e sinceramente conforme a norma da Escritura, disseram constar ele de duas partes: mortificação e vivificação. Interpretam a mortificação como a aflição da alma e o pavor concebido pelo reconhecimento do pecado e do senso do juízo de Deus. Pois, quando alguém é levado ao verdadeiro conhecimento do pecado, então começa realmente a odiar e a execrar o pecado, então de coração sente aversão por si mesmo, confessa-se miserável e perdido e deseja ser outro. Além disso, quando se sente tocado por algum senso do juízo de Deus (ora, um decorre diretamente do outro), então realmente se prostra abatido e consternado, treme humilhado e acabrunhado, perde o ânimo, desespera-se. Esta é a primeira parte do arrependimento, a qual geralmente designaram de contrição. Interpretam a vivificação como sendo a consolação que nasce da fé, a saber, quando o homem, prostrado pela consciência do pecado e abatido pelo temor de Deus, a seguir mira a bondade de Deus. Sua misericórdia, graça e salvação, que é através de Cristo, o faz reerguer-se, reanimar-se, recobrar alento, e sente como que passado da morte para a vida. E, sem dúvida, esses dois termos, se apenas imaginam ser a interpretação correta, exprimem muito bem o espírito do arrependimento. Entretanto, se tomam vivificação por jubilação, a qual a alma recebe depois de aliviada da inquietação e do medo, não estou de acordo, quando significa antes o esforço de viver santa e piamente, que nasce do novo nascimento, como se estivesse dizendo que o homem morre para si a fim de começar a viver para Deus.

João Calvino

O ARREPENDIMENTO É FRUTO DIRETO E NECESSÁRIO DA FÉ

Cristo e João Batista, dizem eles, em suas pregações, primeiro exortam o povo ao arrependimento, em seguida acrescentam que o reino dos céus está próximo [Mt3.2; 4.17]. Os apóstolos recebem a incumbência de pregar a mesma coisa, ordem que Paulo também seguiu, segundo a menção que Lucas faz [At 20.21]. E todavia, enquanto se prendem supersticiosamente no encadeamento das sílabas, não atentam para o sentido pelo qual se ligam entre si essas palavras. Ora, enquanto Cristo, o Senhor, e João Batista, pregam desta maneira: “Arrependei-vos, pois, porque o reino dos céus está próximo” [Mt 3.2], porventura não derivam da própria graça e da promessa de salvação a causa do arrependimento? Logo, suas palavras valem exatamente como se estivessem afirmando: “Visto que o reino dos céus está próximo, por isso arrependei-vos.” Ora, Mateus, quando narrou que João pregara nesses termos, ele estava ensinando que nele se cumpriu o vaticínio de Isaías, em relação à voz que clama no deserto: “Preparai o caminho do Senhor, fazei retas as veredas de nosso Deus” [Mt 3.3; Is 40.3]. Mas, no Profeta, ordena-se que essa voz comece pela consolação e alegre nova” [Is 40.1, 2]. Contudo, quando atribuímos à fé a origem do arrependimento, não sonhamos algum espaço de tempo no qual se lhe dê à luz; ao contrário, queremos pôr à mostra que o homem não pode aplicar-se seriamente ao arrependimento, a não ser que reconheça ser de Deus. Mas, ninguém é verdadeiramente persuadido de que é de Deus, salvo aquele que haja antes reconhecido sua graça. Estas coisas, porém, serão mais lucidamente discutidas no próprio andamento da exposição. Talvez os tenha enganado o fato de que muitos são quebrantados de sobressaltos de consciência ou afeiçoados à obediência antes que sejam imbuídos do conhecimento da graça; com efeito, antes mesmo que tenham sentido o gosto. E é este o chamado temor inicial que alguns contam entre as virtudes, já que o vêem como muito parecido com verdadeira e justa obediência. Aqui, porém, não se trata de quão variadamente Cristo nos atraia a si, ou nos prepare para o cultivo da piedade: estou apenas afirmando que não se pode achar retidão alguma onde não reina esse Espírito que Cristo recebeu para que o comunicasse a seus membros. Digo, em seguida, de conformidade com essa afirmação do Salmo [130.4]: “Em ti há propiciação, para que sejas temido”, que ninguém jamais reverenciará a Deus, senão aquele que confiar que ele lhe é propício; ninguém se cingirá de boa vontade para a observância da lei, senão aquele que estiver persuadido de que suas expressões de obediência lhe são aprazíveis. Esta deferência de Deus, em relevar-nos o demérito e tolerar os vícios, é sinal de seu paterno favor. Esta exortação de Oséias também mostra Isto: “Vinde, retornemos ao Senhor, porque ele nos apanhou e nos sarará; nos feriu e nos curará” [Os 6.1], pois a esperança de perdão é adicionada como um acicate, para que os homens não adormeçam em seus pecados. Mas, carece de toda evidência de razão o desvario daqueles que, para começar do arrependimento, prescrevem a seus neófitos certos dias durante os quais se exercitem em penitência; passados, afinal, os quais, os admitem à comunhão da graça do evangelho. Falo da maior parte dos anabatistas, especialmente daqueles que exultam sobremaneira em ser tidos como os espirituais, e de seus confrades, os jesuítas, e gentalha afim. Tais frutos, evidentemente, são produzidos por esse espírito de torvelinho que limita a uns poucos dias a penitência que ao homem cristão deve prorrogar-se por toda a vida.

João Calvino

SOMOS REGENERADOS MEDIANTE A FÉ. ONDE SE TRATA TAMBÉM DO ARREPENDIMENTO

O ARREPENDIMENTO É COROLÁRIO IMPRESCINDÍVEL DA FÉ

Se bem que, em certa medida, já ensinamos como a fé possui a Cristo, e através dela desfrutamos de suas benesses, isso, no entanto, seria ainda obscuro, a não ser que se adicione uma explicação dos efeitos que sentimos dela. Não sem fundamento, a suma do evangelho fixa-se no arrependimento e no perdão dos pecadas [Lc 24.47; At 5.31]. Logo, omitidos esses dois tópicos, será fria e mutilada, e até quase inútil, toda e qualquer discussão da fé. Ora, uma vez que Cristo nos confere ambas essas coisas, isto é, novidade de vida e reconciliação graciosa, e a ambas alcançamos pela fé, discute-se a razão e método de ensinar, ambas as quais começo a dissertar neste ponto. O próximo passo, porém, nos será da fé ao arrependimento, porque, conhecido adequadamente esse ponto, melhor se evidenciará como somente pela fé e puro perdão o homem é justificado; contudo, a graciosa imputação de justiça não é separada, por assim dizer, da real santidade de vida. Entretanto, deve estar fora de controvérsia que o arrependimento não apenas segue de contínuo a fé, mas inclusive nasce dela. Ora, uma vez que pela pregação do evangelho é oferecido perdão e remissão para que o pecador, liberado da tirania de Satanás, do jugo do pecado e da mísera servidão dos vícios, seja transportado ao reino de Deus, por certo que ninguém pode abraçar a graça do evangelho a não ser que se afaste dos erros da vida e tome a via reta, e aplique todo seu esforço à prática do arrependimento. Mas, os que pensam que o arrependimento precede à fé e não é produzida por ela, como o fruto de sua árvore, estes jamais souberam no que consiste sua propriedade e natureza, e, ao pensar assim, se apoiam num fundamento sem consistência.

João Calvino

NÃO RARO, A FÉ E A ESPERANÇA SÃO EXIBIDAS NA ESCRITURA COMO RECÍPROCAS OU SINÔNIMAS

Em virtude desta conjunção e afinidade, a Escritura não raro funde os termos fé e esperança, ora usando um, ora o outro. Pois, quando Pedro ensina que, “pelo poder de Deus somos guardados pela fé até a revelação da salvação” [1Pe 1.5], ele atribui à fé o que mais se adequava à esperança. Não sem razão, porque já ensinamos que a esperança não é outra coisa senão o alimento e força da fé. Algumas vezes esses termos são unidos lado a lado como nesta mesma Epístola: “De modo que vossa fé e esperança estejam em Deus” [1Pe 1.21]. Paulo, porém, na Epístola aos Filipenses [1.20], deriva da esperança a expectativa, visto que, em esperando pacientemente, suspendemos nossos desejos até que se manifeste a oportunidade de Deus. Tudo o que se pode entender melhor do décimo capitulo da Epístola aos Hebreus, eu já citei. Paulo, em outro lugar [Gl 5.5], ainda que fale com certa inadequação, contudo entende isto mesmo, nestas palavras: “Nós, pelo Espírito da fé, aguardamos a esperança da justiça.” Isto é, abraçando o testemunho do evangelho acerca do amor graciosamente concedido, esperamos até que Deus manifeste abertamente o que agora está oculto sob a esperança. Agora já não é tão difícil ver quão insipidamente se aferra Pedro Lombardo a um duplo fundamento da esperança: a graça de Deus e o mérito das obras. Outro escopo não pode haver para esta senão a fé. Mas, já provamos que a fé, por sua vez, não tem outro alvo senão a misericórdia de Deus, e que nela unicamente há de pôr seus olhos. Vale a pena, porém, auscultar quão vívida razão apresenta Lombardo. “Se alguma coisa”, diz ele, “ousas esperar sem méritos, a isso não deves chamar esperança, mas presunção.” Quem, amigo leitor, merecidamente não execre a tais criaturas bestiais que ousam acusar de temeridade e presunção, se alguém confia que Deus é veraz? Ora, querendo o Senhor que esperemos de sua bondade todas essas coisas, há quem diga ser presunção descansar nela? Tal mestre é digno de tais discípulos como os encontrados nas aloucadas escolas dos rábulas! Nós, porém, quando vemos que pelos oráculos de Deus se ordena aos pecadores que nutram a esperança de salvação, mais de bom grado presumamos de sua verdade que, estribados tão-só em sua misericórdia, posta de parte a confiança nas obras, ousemos esperar com firmeza. Não enganará o mesmo que disse: “Faça-se conforme vossa fé” [Mt 9.29].

João Calvino

A ESPERANÇA É INDISSOLUVELMENTE ASSOCIADA À FÉ; AQUELA RESULTA NECESSARIAMENTE DESTA

Ora, onde quer que exista esta fé viva, necessariamente irá acompanhada da esperança na vida eterna; ou, melhor dizendo, ela a engendra e produz. E se não temos esta esperança, por mui eloqüente e elegantemente que falemos da fé, é indubitável que não existe em nós nenhum indício dela. Ora, se a fé, como se ouviu, é a segura convicção acerca da verdade de Deus, porque não pode mentir-nos, nem nos enganar, nem ser vã, quantos conceberam esta certeza de fato esperam, ao mesmo tempo, que Deus haverá de cumprir suas promessas, as quais, em sua convicção, não podem outra coisa ser senão verdadeiras, de sorte que, em suma, a esperança não pode ser outra coisa, senão a expectativa dessas coisas que a fé tem crido ser verdadeiramente prometidas por Deus. Desse modo, a fé crê que Deus é veraz; a esperança espera que, no tempo oportuno, ele exiba sua verdade. A fé crê que Deus é nosso Pai; a esperança espera que isso nos seja sempre demonstrado. A fé crê que a vida eterna nos foi dada; a esperança espera que um dia ela haja de ser revelada. A fé é o fundamento sobre que a esperança repousa; a esperança nutre e sustém a fé. Como, pois, ninguém pode esperar de Deus absolutamente nada, a não ser quem antes creu nas promessas, assim, por outro lado, importa que a fragilidade de nossa fé seja mantida e sustentada, esperando pacientemente, a fim de que não desfaleça. Razão por que Paulo, com muito acerto, coloca nossa salvação na esperança [Rm 8.24]. Porque, enquanto em silêncio espera o Senhor, ela contém a fé, para que não se arroje com demasiada impetuosidade; firma-a, para que não vacile nas promessas de Deus, nem comece a duvidar de sua verdade; reanima-a, para que não sucumba à fadiga; assiste-a até essa meta final, para que não falhe no meio da corrida, ou até mesmo no ponto de partida; enfim, ao renová-la e restaurá-la constantemente, faz com que mantenha sua perseverança, dia a dia, mais robustecida. E de quantas razões são realmente necessários os subsídios da esperança para que a fé tenha estabilidade, melhor se patenteará se ponderarmos de quantas formas de tentações são acometidos e sacudidos aqueles que têm abraçado a Palavra de Deus. Primeiramente, ao delongar suas promessas, freqüentemente, o Senhor nos mantém de ânimo suspenso por mais tempo do que gostaríamos. Este é o ofício da esperança: executar o que o Profeta ordena: se as promessas se delongarem, contudo, esperemos [Hc 2.3]. De vez em quando o Senhor não só nos deixa enlanguescer, mas até nos ostenta franca indignação. Aqui muito mais necessário é que a esperança socorra nossa fé, para que, segundo o dito de outro Profeta, possamos afirmar: “esperarei o Senhor, que esconde sua face da casa de Jacó” [Is 8.17]. Além disso, levantam-se os que desdenham, como diz Pedro, e perguntam: “Onde está a promessa de sua vinda, porquanto desde que os pais adormeceram, tudo continua desde o início da criação?” [2Pe 3.4]. Com efeito, essas mesmas coisas nos sussurram a carne e o mundo. Aqui, importa que a fé, sustentada na paciência da esperança, seja conservada fixa na contemplação da eternidade, para que considere que “mil anos são como um só dia” [Sl 90.4; 2Pe 3.8].

João Calvino

O CONCEITO DE FÉ À LUZ DE HEBREUS 11.1, A QUAL SE MANIFESTA NO AMOR A DEUS

Portanto, como o vejo, a natureza da fé não pode ser explicada mais claramente do que pela substância da promessa, na qual, à guisa de um firme fundamento, se apóia de tal maneira que, se for suprimida, irá completamente ao chão; ou, melhor, se reduzirá a nada. Por isso tomamos daí nossa definição, a qual, entretanto, de modo algum é alheia àquela definição, ou, melhor, descrição do Apóstolo, a qual ele anexa a seu arrazoado, onde ensina que “a fé é a subsistência das coisas que se devem esperar, a evidênciadas coisas que não se vêem”[Hb 11.1]. Ora, por u`po,stasin [hyp(stasin – subsistência], vocábulo que emprega nessa passagem, ele entende como se fosse um sustentáculo ao qual a mente piedosa se arrime e sobre o qual descanse. Como se estivesse dizendo que a própria fé é como que uma posse certa e segura dessas coisas que nos foram prometidas por Deus. A não ser que alguém prefira tomar u`po,stasin no sentido de confiança, o que não me desagrada, se bem que abraço aquilo que é mais aceito. Por outro lado, para que fizesse saber que até o dia supremo, quando “serão abertos os livros” [Dn 7.10; Ap 20.12], há coisas mais sublimes do que as que podem ser percebidas por nossa sensibilidade, ou divisadas por nossos olhos, ou tocadas por nossas mãos, e não de outro modo são elas, no ínterim, por nós possuídas, a não ser que transcendamos todo o alcance de nossa mente e elevemos nossa capacidade acima de todas as coisas que estão no mundo; enfim, nos elevemos além de nós próprios. Acrescentou que esta certeza de possuir é de coisas que jazem na esperança, e por isso elas não são vistas. Certamente que, como o escreve Paulo [Rm 8.24], evidência não é esperança, nem são objeto de nossa esperança as coisas que vemos. Quando, pois, a chama indicação, ou prova, ou, como a traduziu freqüentemente Agostinho, convicção de coisas não presentes (ora, em grego, o termo é e;legcoj [$l$nch(s]), fala exatamente como se dissesse que a evidência de coisas que não aparecem, a visão dessas coisas que não se vêem, a clarificação de coisas obscuras, a presença de coisas ausentes, a manifestação de coisas ocultas. Ora, os mistérios de Deus, cuja espécie são as coisas que dizem respeito a nossa salvação, não se podem discernir em si mesmas e, como se diz, em sua própria natureza; com efeito, só o podemos contemplar em sua Palavra, cuja verdade a tal ponto nos deve ter sido inculcada, que temos de considerar como realizado e cumprido tudo quanto ele nos disse. Aliás, como o ânimo se alçará para provar o gosto da divina bondade, sem que profundamente se inflame, ao mesmo tempo, a corresponder o amor de Deus? Pois, de fato, essa afluência de dulçor que Deus tem reservado aos que o temem não pode ser conhecida, se ao mesmo tempo não nos tocar profundamente o coração. Mas, a quem uma vez tocou, o arrebata e o separa inteiramente para si. Daí, não é de admirarse ao coração perverso e tortuoso jamais domine esse afeto pelo qual, transportados ao próprio céu, somos admitidos aos mais recônditos tesouros de Deus e aos mais sagradosrecessos de seu reino, os quais não podem ser profanados pelo ingresso de um coração impuro. Ora, o que os escolásticos ensinam: que o amor precede à fé e à esperança, é mero delírio, porquanto somente a fé é que gera em nós primeiramente o amor. Quanto mais acuradamente fala Bernardo: “O testemunho da consciência”, diz ele, “que Paulo chama a glória dos piedosos [2Co 1.12], creio consistir em três coisas! Ora, é necessário antes de tudo crer que não se pode ter remissão de pecados senão pela misericórdia de Deus; então, que nada, absolutamente, se pode ter de boa obra, a não ser que também isto ele próprio conceda; finalmente, que não se pode merecer a vida eterna por nenhuma obra, salvo se também graciosamente ela seja concedida.” Pouco depois Bernardo acrescenta que essas coisas não são suficientes, contudo, são um como que princípio da fé, visto que, ao crer que os pecados não podem ser perdoados senão por Deus, ao mesmo tempo é preciso sustentar que eles nos foram perdoados, até que também sejamos persuadidos pelo testemunho do Espírito Santo de que a salvação nos foi assegurada. Pelo fato de Deus perdoar os pecados, de ele mesmo propiciar os méritos, e de ele mesmo distribuir os galardões, não podemos ficar estacionários nesse princípio. Estas e outras questões, porém, terão de ser tratadas em seus devidos lugares. Baste-nos no momento sabermos o que é a fé.

João Calvino

A FÉ IMPLÍCITA É A CERTEZA DA PERSEVERANÇA FINAL DOS SANTOS

E para que não tentem demolir a firmeza da fé apenas de uma só posição estabelecida, atacam-na de outra parte, isto é, embora, segundo o presente estado de nossa justiça, seja possível ajuizar da graça de Deus, no entanto permanece em suspenso o conhecimento da perseverança final. Admirável segurança, de fato, nos é deixada se, no presente momento, só pudéssemos julgar à base de conjetura moral de que estamos na graça, porém não soubéssemos como estaremos amanhã! O Apóstolo afirma algo muito diferente: “Estou profundamente persuadido”, diz ele, “de que nem os anjos, nem as potestades, nem os principados, nem a morte, nem a vida, nem as coisas presentes, nem as futuras nos separarão do amor com que o Senhor nos abraça em Cristo” [Rm 8.38, 39]. Tentam safar-se com uma solução frívola, tagarelando que o Apóstolo teve isso por meio de revelação especial. No entanto, estão demasiadamente premidos para que possam escapar. Porque na verdade ele está tratando ali das bênçãos que provêm da fé a todos os fiéis em comum, não das que pessoalmente experimenta em particular. Com efeito, insistem que o mesmo Paulo, em outro lugar, nos atemoriza com a menção de nossa fraqueza e inconstância: “Quem está de pé”, diz ele, “veja que não caia” [1Co 10.12]. Isto é verdadeiro, todavia aqui não se trata de um temor que nos deixa consternados, mas para que aprendamos a humilhar-nos sob a poderosa mão de Deus, como Pedro o sentencia [1Pe 5.6]. Além disso, quão temerário é limitar a certeza da fé a determinado ponto do tempo, quando é qualidade própria dela superar a presente vida e chegar à imortalidade! Portanto, quando os fiéis levam isto em favor da graça de Deus, que, iluminados por seu Espírito, mediante a fé, desfrutam da contemplação da vida celestial, tão longe está desse gênero de arrogância gloriar-se que, se alguém se envergonha de confessá-lo, nisto mais revela extrema ingratidão, suprimindo impiamente a bondade de Deus, do que comprove modéstia ou submissão.

João Calvino

A CERTEZA E CONVICÇÃO DA FÉ NÃO É PRESUNÇÃO FORTUITA, MAS TESTEMUNHO E UNÇÃO DO ESPÍRITO

Além disso, alegam ser de presunção temerária arrogar para si conhecimento indubitável da vontade divina. Certamente que isto eu lhes concederia de bom grado, se assumíssemos tanto que na pequenez de nosso entendimento houvéssemos de pretender encerrar o desígnio incompreensível de Deus. Quando, porém, simplesmente dizemos com Paulo que “não recebemos o espírito deste mundo, mas o Espírito que procede de Deus”, em virtude de cujo ensino passamos a conhecer as coisas que nos foram dadas por Deus” [1Co 2.12], que podem eles objetar em contrário sem injuriar obstinadamente o Espírito de Deus? Porque, se é um horrendo sacrilégio acusar de falsidade, ou de incerteza, ou de ambigüidade a revelação, cujo autor é Deus, que pecado cometemos nós? Com efeito, também alegam que não há falta de grande temeridade atrevermos gloriar-nos de tal modo do Espírito de Cristo. Quem poderia crer ser tão grande o embotamento dos que querem ser os mestres do orbe, e que tropeçam tão vergonhosamente nos próprios elementos rudimentares da religião? Certamente que isso me resultaria incrível, não fosse o que atestam os escritos que a eles subsistem. Paulo pronuncia que os filhos de Deus são exclusivamente os que se deixam guiar por seu Espírito [Rm 8.14]; estes, porém, querem que os filhos de Deus sejam os que se deixam guiar por seu próprio espírito, no entanto são vazios do Espírito divino. Aquele ensina que Deus é por nós chamado Pai, designativo que é ditado pelo Espírito, que é o único que pode dar testemunho a nosso espírito de que somos filhos de Deus [Rm 8.16]; estes, ainda que não se retraiam da invocação de Deus, contudo eliminam o Espírito, cuja direção deveriam apropriadamente invocar. Aquele nega que sejam servos de Cristo quantos não se deixam guiar pelo Espírito de Cristo [Rm 8.9]; estes inventam um cristianismo que não necessita do Espírito de Cristo. Aquele não admite nenhuma esperança de bem-aventurada ressurreição, a não ser que sintamos que o Espírito habita em nós [Rm 8.11]; estes inventam uma esperança vazia de tal senso. Não obstante, talvez haverão de responder que não negam a necessidade de sermos revestidos do Espírito, contudo, que é próprio da modéstia e da humildade não o proclamarmos. Portanto, que quer Paulo dizer, quando ordena aos coríntios que se examinem se porventura estão na fé; que se provem se porventura têm a Cristo; e que é réprobo todo aquele que não o reconheça como nele habitando [2Co 13.5]? “Mas”, diz João, “sabemos que ele permanece em nós pelo Espírito que nos deu” [1Jo 3.24; cf. 4.13]. E que outra coisa fazemos senão pormos em dúvida as promessas de Cristo, enquanto queremos ser tidos por servos de Deus sem seu Espírito, que proclamou haver de derramar sobre todos os seus [Is 44.3; Jl 2.28]? Que dizer, senão que fazemos agravo ao Espírito Santo, quando separamos dele a fé, a qual é obra exclusiva dele?
Uma vez que estes são os rudimentos primários da piedade, de misérrima cegueira é que os cristãos se deixem taxar de arrogância quando ousam gloriar-se da presença do Espírito Santo, de gloriar-se do fato de que à parte dele o próprio Cristianismo não subsiste. Mas, de fato, com seu exemplo, declaram quão verazmente Cristo falou que seu Espírito é desconhecido do mundo e que é conhecido somente daqueles em quem ele habita [Jo 14.17].

João Calvino

IMPROCEDÊNCIA DO DOGMA ESCOLÁSTICO DE QUE A CERTEZA DA FÉ É UMA CONJETURA MORAL

Daqui se pode ajuizar quão pernicioso seja esse dogma escolástico de que não podemos estatuir de outro modo quanto à graça de Deus para conosco do que por uma conjetura moral, segundo cada um não se reputa indigno dela. Certamente, se houvéssemos de julgar por nossas obras que afeto Deus nos tem, confesso que não o podemos compreender nem pela menor conjetura do mundo.8 Como, porém, deve a fé responder à simples e graciosa promessa, não se deixa nenhuma possibilidade de dúvidas. Ora, pergunto, de que confiança seremos armados, se raciocinarmos que Deus nos é propício com esta condição: desde que a pureza de nossa vida assim o mereça? Entretanto, uma vez que, para tratar destas coisas destinamos seu devido lugar, por ora não iremos mais longe, sobretudo vendo que nada pode haver mais contrário à fé do que a conjetura ou qualquer outro sentimento que tenha algo parecido com a dúvida ou incerteza. E para isso torcem mui abusivamente o testemunho de Eclesiastes, que amiúde têm nos lábios: “Ninguém sabe se, porventura, seja digno de ódio ou de amor” [Ec. 9.1]. Ora, deixando de parte que esta passagemfoi incorretamente traduzida na versão corrente, contudo, não pode ser desconhecido até mesmo às próprias crianças o que Salomão tem em mente com palavras desta natureza, isto é, se alguém queira julgar do presente estado das coisas, a quais delas Deus acossa em ódio, a quais delas abraça em amor, em vão labora ele e se atormenta com nenhum proveito, uma vez que “tudo sobrevemigualmente ao justo e ao ímpio, ao que oferece sacrifícios e ao que não os oferece” [Ec 9.2]. Do quê se segue que Deus não atesta perpetuamente seu amor para com aqueles a quem tudofaz suceder prosperamente, nem manifesta sempre seu ódio para com aqueles a quem aflige. E Salomão faz isso para comprovar a fatuidade do engenho humano, quando em coisas sumamente necessárias de se conhecer ele se vê dominado de tão grande obtusidade. Como havia escrito pouco antes [Ec 3.19], não se pode discernir em que a alma do homem difira da alma do animal, visto que parece morrer da mesma forma. Se alguém daí queira inferir que a convicção que temos acerca da imortalidade das almas se apoia em mera conjetura, porventura com razão não será tido por insano? Portanto, porventura são dotados de são juízoesses que, porque não se pode alcançar nenhuma conclusão da percepção sensória das coisas presentes, concluem que nenhuma certeza existe da graça de Deus?

João Calvino

A FÉ, SUSTENTADA PELO SENHOR, É VITORIOSA ANTE AS DÚVIDAS E TENTAÇÕES QUE NOS ASSALTAM

Aliás, não estou esquecido do que disse antes e cuja lembrança a experiência renova constantemente, isto é, que a fé é assaltada por variadas dúvidas, de sorte que raramente as mentes dos piedosos estão sossegadas, pelo menos não desfrutam sempre de condição tranqüila. Mas, sempre que se vêem sacudidas por tantas máquinas de guerra, ou se soerguem do próprio sorvedouro das tentações, ou permanecem firmes em sua posição. Com efeito, só esta segurança nutre e protege a fé, quando prescrevemos o que se diz no Salmo: “O Senhor é nossa proteção, nosso auxílio na tribulação. Por isso, não temeremos, ainda que a terra estremeça e no coração do mar os montes se precipitem” [Sl 46.2, 3]. Também em outro lugar celebra-se este suavíssimo repouso: “Deitei-me a dormir e peguei no sono, e tornei a acordar-me, porque o Senhor me susteve” [Sl 3.5]. Não que Davi, de equânime disposição, sempre se deixou dominar por jovial alacridade. Mas, até onde, na medida da fé, degustava ele a graça de Deus, gloria-se de desprezar intrepidamente tudo quanto lhe podia inquietar a paz da mente. Por isso, a Escritura, quando quer exortar-nos à fé, nos ordena que nos aquietemos. Assim, em Isaías [30.15]: “Na esperança e no silêncio estará vossa força”; no Salmo [37.7]: “Cala-te diante do Senhor e nele espera”; ao que corresponde esta declaração do Apóstolo na Epístola aos Hebreus [10.36]: “Porque necessitais de paciência” etc.

João Calvino

A FÉ É NÃO SÓ A ILUMINAÇÃO DA MENTE OPERADA PELO ESPÍRITO, MAS TAMBÉM O SELO DO ESPÍRITO NO CORAÇÃO

Portanto, o que o entendimento recebeu, há de plantar-se no coração. Porque, o fato de a Palavra de Deus girar na cabeça não significa que ela seja apreendida pela fé; ao contrário, só acontece quando deita raízes no íntimo do coração, de sorte que seja um baluarte invencível para suster e repelir a todos os engenhos das tentações. Pois, se é verdadeiro que a real compreensão da mente é sua iluminação, em tal confirmação do coração seu poder transparece muito mais evidente, isto é, em que não só maior é a desconfiança do coração que a cegueira da mente, mas também mais difícil é o ânimo prover-se de certeza do que a mente imbuir-se de conhecimento. Conseqüentemente, o Espírito faz as vezes de um selo para marcar em nosso coraçãoestas mesmas promessas cuja certeza antes nos imprimiu à mente e ele toma o lugar de um penhor para confirmá-las e estabelecê-las. “Depois que crestes”, diz o Apóstolo, “fostes selados com o Santo Espírito da promessa, o qual é o penhor de nossa herança” [Ef 1.13]. Vês como nesta passagem Paulo ensina que os corações dos fiéis são gravados pelo Espírito, como se por um selo, e que o chama Espírito da promessa, porque ele nos faz o evangelho indubitável? De igual modo, na Segunda Epístola aos Coríntios: “Quem nos ungiu é Deus”, diz ele, “que não só nos selou, mas também deu o penhor do Espírito em nossos corações” [2Co 1.21, 22]. E, em outro lugar, quando fala da confiança e ousadia de nossa esperança, faz do penhor do Espírito seu fundamento [2Co 5.5].

João Calvino

A FÉ É OBRA DE DEUS, DOM E MANIFESTAÇÃO DE SEU PODER

Em outro lugar, quando tivemos de tratar da corrupção da natureza, mostramos mais plenamente que os homens não são idôneos a crer. E assim não fatigarei os leitores, repetindo as mesmas coisas. É suficiente que, por meio de Paulo, a própria fé com a qual somos dotados pelo Espírito seja chamada “espírito de fé” [2Co 4.13], a qual, porém, não temos por natureza. Por isso, ele ora para que nos tessalonicenses “cumpra Deus em poder todo seu beneplácito e a obra da fé” [2Ts 1.11], onde à fé chama obra de Deus; e em vez de caracterizá-la com um adjetivo, dizendo ser ela beneplácito, nega ser a fé produto do próprio sentimento do homem; não contente com isso, acrescenta que ela é expressão do poder divino. Na Epístola aos Coríntios, onde diz que a fé não depende da sabedoria dos homens, pelo contrário é fundamentada no poder do Espírito [1Co 2.4, 5], na verdade ele está falando de milagres externos; mas, porque os réprobos se fazem cegos em sua contemplação deles, compreende também ser ela aquele selo interior, de que faz menção em outro lugar [Ef 1.13; 4.30]. E, para que em tão preclaro dom Deus ilumine ainda mais sua liberalidade, não concede dele a todos indiscriminadamente, mas por privilégio regular o concede àqueles a quem o queira. Já citamos previamente comprovações deste ponto, dos quais, fiel intérprete, exclama Agostinho:5 “Para ensinarque até o próprio crer é um dom, não um mérito, diz o Salvador: ‘Ninguém vem a mim, a não ser que meu Pai o tenha trazido’ [Jo 6.44], e ‘aquele a quem foi dado por meu Pai’ [Jo 6.65]. É estranho que dois ouvem a Palavra: um a despreza, outro a abraça. O que a menospreza, que o impute a si mesmo; o que a abraça, que não se vanglorie nisso.”6 Em outro lugar: “Por que é dado a um, não a outro? Não me acanho em dizer: Este é o profundo mistério da cruz! Da profundeza dos juízos de Deus, que não podemos perscrutar, procede tudo quanto podemos. O que posso, vejo; donde posso, não vejo, exceto que, até onde vejo, isso provém de Deus. Mas, por que esse e não aquele? É muito para mim. É um abismo: a profundeza da cruz! Posso exclamar em admiração, não posso demonstrálo com argumento.” A síntese desta matéria se reduz a isto: Quando, pelo poder de seu Espírito, Cristo nos ilumina a fé, ao mesmo tempo nos enxerta em seu corpo, para que nos façamos participantes de todas as suas benesses.

João Calvino

SÓ SOMOS LEVADOS A CRISTO E SEU REINO, EM GENUÍNA E VERDADEIRA FÉ, EM VIRTUDE DO ESPÍRITO DO SENHOR

Com efeito, se, como Paulo proclama, ninguém é testemunha da vontade humana, “senão o espírito do homem que nele está”, então que homem teria conhecimento da vontade divina [1Co 2.11]? E se a verdade de Deus se nos revela dúbia até nessas coisas que contemplamos com a presente visão, como firme e estável haveria ela de ser, quando o Senhor promete que nem o olho vê, nem a mente concebe essas coisas? Mas, a tal ponto a perspicácia humana é aqui frustrada e se revela deficiente, que o primeiro passo de avanço na escola do Senhor é abrir mão dela. Porque, como um lençol distendido, somos por ela impedidos de alcançar os mistérios de Deus, os quais não se revelam senão aos pequeninos [Mt 11.25; Lc 10.21]. “Pois, nem carne e sangue os revelam” [Mt 16.17], “nem o homem natural compreende essas coisas que são do Espírito”, senão que, antes, a doutrina de Deus são para eles como estultícia, “visto que ela tem de ser discernida espiritualmente” [1Co 2.14]. Portanto, necessária é a assistência do Espírito Santo; ou, antes, aqui somente seu poder é que vigora. “Pois, quem compreendeu a mente do Senhor? ou quem foi seu conselheiro?” [Rm 11.34]; “mas o Espírito perscruta a todas as coisas, até mesmo as coisas profundas de Deus” [1Co 2.10]; Espírito esse pelo qual resulta que “temos a mente de Cristo” [1Co 2.16]. “Ninguém pode vir a mim”, diz ele, “a menos que o Pai, que me enviou, o traga” [Jo 6.44]. Logo, todo aquele que ouviu do Pai, e dele aprendeu, vem a Cristo [Jo 6.45]. Não que alguém tenha visto o Pai, senão aquele que foi enviado por Deus [Jo 1.18; 5.37]. Portanto, como de modo algum podemos aproximar-nos de Cristo, salvo se formos trazidos pelo Espírito de Deus, assim, quando somos trazidos, somos elevados, em mente e coração, acima de nosso próprio entendimento. Pois, por ele iluminada, a alma adquire como que nova agudeza de visão, mercê da qual contempla os mistérios celestes, de cujo esplendor era antes ofuscada em si própria. E de fato o intelecto do homem, antes disso inteiramente fátuo e insípido em saboreá-las, de tal modo irradiado da luz do Santo Espírito, então na verdade começa, afinal, a provar o sabor daquelas coisas que dizem respeito ao reino de Deus. Por esse motivo, estando Cristo a explicar claramente os mistérios de seu reino aos dois discípulos[Lc 24.27], contudo, nada obtém até que “lhes abre o entendimento para que compreendam as Escrituras” [Lc 24.45]. Assim, depois que os apóstolos são instruídos por sua divina boca, não obstante é necessário enviar-lhes o Espírito da verdade para que lhes instile nas mentes a mesma doutrina de que se apropriaram pelos ouvidos [Jo 16.13]. Realmente, a Palavra de Deus é como o sol a refulgir em todos a quem é pregada; contudo, entre os cegos ela não obtém nenhum fruto. Nós, porém, neste aspecto, somos todos cegos por natureza. Conseqüentemente, não pode ela penetrar nossa mente, a não ser que esse Mestre interior, o Espírito, lhe faculte entrada mediante sua iluminação.

João Calvino

A FÉ SE FIRMA NA PALAVRA DA ESCRITURA ATRAVÉS DA ILUMINAÇÃO DA MENTE E DO ALENTO DO CORAÇÃO EFETUADOS PELO ESPÍRITO SANTO

Com efeito, esta comprovação franca e objetiva da Palavradevia, por certo, bastar sobejamente para produzir a fé, não fosse o fato de nossa cegueira e obstinação o impedir. Na verdade, tanto é a propensão de nossa mente para a fatuidade, que não pode ela jamais aproximar-se da verdade de Deus, tal é sua obtusidade, sempre se faz cega à sua luz. Conseqüentemente, de nenhum efeito é a Palavra sem a iluminação do Espírito Santo. Donde também se faz claro que a fé é muito superior ao entendimento humano. E não basta que o entendimento seja iluminado pelo Espírito de Deus; é preciso também que o coração seja corroborado e confirmado por seu poder.4 Nisto extraviam-se totalmente os escolásticos, os quais na consideração da fé miram somente o assentimento puro e simples,resultante do conhecimento, preterindo a confiança e a certeza do coração. Portanto, de uma e outra maneira singular, a fé é um dom de Deus, não só que nela é expurgada a mente do homem para degustar a verdade de Deus, mas também que nela o coração é firmado. Ora, tampouco é o Espíritomeramente o iniciador da fé, mas ele a faz crescer passo a passo, até que ela nos conduza inteiramente ao reino celeste. “Guarda o precioso depósito”, diz Paulo, “mediante o Espírito Santo, que habita em nós” [2Tm 1.14]. Como, no entanto, Paulo ensina que o Espírito é dado pelo ouvir da fé [Gl 3.2], isto pode ser explicado sem nenhuma dificuldade. Se houvesse apenas um dom do Espírito, Paulo teria chamado a fé, absurdamente, o Espírito, efeito da fé, o qual é seu autor e causa. Como, porém, ele menciona os muitos dons do Espírito com os quais Deus adorna sua Igreja, e em virtude de incrementos da fé a conduz à perfeição, não é de admirar se os atribua à fé, a qual nos prepara para recebê-los. Em verdade, isto é tido como extremamente paradoxal, a saber, quando se diz que ninguém, a não ser a quem ele tenha sido dado, pode crer em Cristo. Mas isso em parte se deve porque não atentam para a sabedoria celestial, quão recôndita e sublime é ela, ou porque a obtusidade humana é extremamente profunda para perceber os mistérios de Deus; em parte porque não têm em mira aquela sólida e estável constância de coração, isto é, a parte principal da fé.

João Calvino

A FÉ SE POLARIZA NAS PROMESSAS DE DEUS E É EXPRESSÃO DE SEU AMOR, CUJO CUMPRIMENTO SE ACHA EM CRISTO

Por outro lado, não é sem causa que encerramos em Cristo todas as promessas, quando o Apóstolo inclui no conhecimento dele não só a todo o evangelho, como também ensina, em outro lugar, que tantas quantas são as promessas de Deus, nele estão o sim e o amém [2Co 1.20], isto é, ratificadas. A razão é muito clara. Pois se Deus promete algo, nisso atesta sua benevolência, já que nenhuma promessa sua há que não seja um testemunho de seu amor. Nem vem ao caso o fato de que, enquanto os ímpios se cumulam de ingentes e repetidos benefícios da divina liberalidade, de tanto mais severo juízo se revestem. Ora, uma vez que nem mesmo pensam, nem reconhecem que estas coisas lhes provêm da mão do Senhor, ou, se porventura o reconheçam, entretanto de modo algum em seu íntimo ponderam sua bondade; daí não podem ser ensinados acerca de sua misericórdia mais do que o podem os animais brutos, os quais, na medida de sua condição, recebem o mesmo fruto da divina liberalidade, contudo, não têm consciência dela. Em nada mais impede à posição aqui sustentada o fato de que, em geralmente rejeitando as promessas destinadas a si, com esse ensejo acarretam a si maior vingança. Ora, ainda que a eficácia das promessas, afinal, então se faz patente, quando em nós encontraram fé, entretanto, pela nossa irresponsabilidade ou ingratidão nunca se extinguem sua força e prosperidade. Portanto, quando, em virtude de suas promessas, o Senhor convida o homem não apenas a colher os frutos de sua benignidade, mas também a meditar neles, ao mesmo tempo está a proclamar seu amor para com ele. Por isso é indispensável volver-se a este ponto: que toda e qualquer promessa é um atestado do amor divino para conosco. De fato, está fora de controvérsia que ninguém é amado por Deus à parte de Cristo: é ele o Filho Amado, em quem o amor do Pai habita e repousa; e então dele se difunde a nós, assim como Paulo ensina que temos alcançado graça no Amado [Ef 1.6]. É necessário, pois, que por seu intermédio e intercessão chegue a nós sua graça. Por isso, em outro lugar [Ef 2.14], o Apóstolo o chama nossa paz; em outro [Rm 8.3], apresenta-o como o liame pelo qual Deus é ligado a nós em afeição paterna. Segue-se que devemos volver para ele nossos olhos sempre que nos for oferecida alguma promessa; nem Paulo ensina absurdamente que nele são confirmadas e cumpridas todas as promessas que se acham em Deus [Rm 15.8]. Certos exemplos nos são contrapostos. Ora, é difícil de acreditar que, por exemplo, Naamã, o sírio, viesse a ser doutrinado a respeito do Mediador, quando indagava do Profeta quanto ao modo de cultuar corretamente a Deus. Entretanto, sua piedade é louvada [2Rs 5.1-14; Lc 4.27]. Cornélio, homem gentio e romano, mal pôde apreender o que nem a todos os judeus era conhecido, e na verdade o conheceu de maneira obscura. Todavia, suas esmolas e preces foram agradáveis a Deus [At 10.31]. E os sacrifícios de Naamã foram aprovados, conforme a resposta do Profeta [2Rs 5.17-19], o que nenhum dos dois pôde conseguir senão pela fé. Semelhante é o caso do eunuco a quem Filipe foi conduzido, o qual, a não ser que fosse assistido de certa fé, não teria assumido o labor e as despesas de uma jornada longa e difícil a fim de adorar[At 8.27-29]. Vemos, contudo, como, interrogado por Filipe, ele põe à mostra seu desconhecimento quanto ao Mediador [At 8.31]. E certamente admito que, em certa medida, não só no que respeita à pessoa de Cristo, mas também no que tange a seu poder e a seu ofício imposto pelo Pai, a fé lhes fora apenas implícita. Entrementes, certo é que foram imbuídos de princípios que lhes dariam certo gosto de Cristo, ainda que tênue. Nem deve isto parecer novo, visto que nem o eunuco se teria apressado de uma região longínqua a Jerusalém em busca de um Deus desconhecido; e Cornélio, tendo uma vez abraçado a religião judaica, não passou tanto tempo sem que apreendesse os rudimentos da doutrina verdadeira. Quanto concerne a Naamã, teria sido sobremodo absurdo, quando Eliseu o instruiu acerca de coisas diminutas, haver silenciado quanto ao ponto principal. Portanto, ainda que o conhecimento que tiveram de Cristo fosse obscuro entre eles, contudo, é inadmissível que não tivessem nenhum, já que se exercitavam nos sacrifícios da lei, os quais se diferenciavam dos falsos sacrifícios dos pagãos por seu propósito, isto é, por Jesus Cristo.

João Calvino

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

A FÉ SE CALCA NA PALAVRA DA ESCRITURA E NELA SE CONTÉM

Na verdade, daqui uma vez mais enfeixamos o que foi antes exposto: que a fé não tem menos necessidade da Palavra que o fruto da raiz viva da árvore, porquanto, atesta-o Davi, nenhum outro pode esperar em Deus senão aquele que conhece seu nome [Sl 9.10]. Esse conhecimento, porém, não provém da imaginação de cada um, mas até onde o próprio Deus é testemunha de sua bondade. Isto confirma-o, em outro lugar, o mesmo Profeta: “Tua salvação em conformidade com tua palavra” [Sl 119.41]. Igualmente: “Em tua palavra tenho esperado; salva-me [Sl 119.146, 147]. Onde se deve notar, primeiro, a relação da fé com a Palavra; a seguir, a conseqüência resultante da fé. Contudo, não estamos com isso excluindo o poder de Deus, em cuja contemplação a fé há de apoiar-se, se queremos conferir a Deus sua honra. Paulo parece falar acerca de Abraão de forma fria ou vulgar: que ele creu que Deus, que lhe prometera uma descendência abençoada, era poderoso para cumprir esta promessa [Rm 4.21]. De igual modo, em outro lugar, em referência a si próprio: “Sei em quem tenho crido, e estou certo de que é poderoso para guardar meu depósito para aquele dia” [2Tm 1.12]. Com efeito, se cada um pondera consigo que muitas vezes dúvidas se insinuam sem cessar em nossa mente, quanto ao poder de Deus, reconhecerá suficientemente que aqueles que o magnificam, como é ele digno, têm feito não reduzido progresso na fé. Todos confessaremos que Deus pode tudo quanto quer; quando, porém, cada mínima tentação nos consterna de medo e nos faz atônitos de horror, dissose manifesta que não diminuímos o poder de Deus ao qual preferimos às ameaças de Satanás contra suas promessas. Esta é a razão por que Isaías, quando quer imprimir no coraçãodo povoa certeza da salvação, tão magnificamente discorre acerca do imenso poder de Deus. Com freqüência parece que, onde ele começou a considerar acerca da esperança de perdão e de reconciliação, muda para outro assunto e vagueia por longos e supérfluos rodeios, celebrando quão maravilhosamente Deus governa o mecanismo do céu e da terra, juntamente com toda a ordem da natureza. Contudo, nada aqui há que não sirva à presente circunstância; porquanto, a não ser que o poder de Deus, pelo qual tudo pode, se nos anteponha aos olhos, dificilmente nossos ouvidos receberão a Palavra, ou não a estimarão com o justo valor. Acrescenta que aqui se lhe assinala o poder eficaz, visto que a piedade, como foi visto em outro lugar, acomoda sempre o poder de Deus ao uso e à necessidade, e põe diante de si especialmente as obras de Deus mediante as quais ele se atestou ser o Pai. Daqui essa menção da redenção tão freqüente nas Escrituras de que os israelitas podiam aprender que Deus, que uma vez por todas lhes fora o autor da salvação, teria de ser seu eterno guardião. Também, com seu exemplo, Davi nos lembra que os benefícios que Deus conferiu a cada um em particular valem para a confirmação de sua fé para o futuro. Com efeito, quando parece haver-nos abandonado, convém que estendamos mais longe nossos pensamentos, para que seus antigos benefícios nos levantem o ânimo, como lemos em outro Salmo: “Lembrei-me dos dias antigos, meditei em todas as suas obras” etc. [Sl 143.5]. Igualmente: “Recordar-me-ei das obras do Senhor, e de suas maravilhas desde o princípio” [Sl 77.11]. Mas, uma vez que, à parte da Palavra, evanescente é tudo quanto concebemos do poder de Deus e de suas obras, afirmamos, não improcedentemente, que nenhuma fé existe até que Deus a faça resplandecer com o testemunho de sua graça. Aqui, entretanto, é possível que se suscite uma pergunta: que se deve sentir a respeito de Sara e de Rebeca, as quais, segundo parece, movidas do zelo da fé, foram além dos limites da Palavra? Sara, como ardesse pelo desejo de receber a prole prometida, entregou sua serva ao marido [Gn 16.2]. Que ela tenha pecado de muitas maneiras, não há como negar-se. Contudo, estou agora abordando esta falha: que, arrebatada pelo seu zelo, não se conteve dentro dos limites da Palavra de Deus. No entanto, é certo que esse desejo procedeu de sua fé. Rebeca, notificada por divino oráculo acerca da eleição de seu filho Jacó, procura-lhe a bênção mediante depravado ardil, engana a seu marido, testemunha e ministro da graça de Deus, obriga seu filho a mentir, corrompe por variadas fraudes e imposturas a verdade de Deus; em suma, ao expor a promessa ao ridículo, quanto está em si, a aniquila. Contudo, este procedimento não foi vazio de fé, por mais que seja vicioso e digno de censura, visto que lhe foi necessário sobrepujar muitos óbices, para que tão incisivamente buscasse o que, sem esperança do beneficio terreno, era abundante de ingentes dificuldades e perigos. Assim também não privaremos inteiramente de fé ao santo patriarca Isaque que, avisado pelo mesmo oráculo quanto à honra transferida ao filho mais moço, entretanto, não deixa de ser propenso para com seu primogênito Esaú. Na verdade, estes exemplos ensinam que, freqüentemente, o erro se mescla com a fé; contudo, de tal maneira que ela, onde é verdadeira, mantenha sempre a preeminência. Pois, assim como o erro particular de Rebeca não tornou nulo o efeito da bênção, assim nem impediu que a fé em sua alma imperasse generalizadamente e fosse o princípio e causa desse proceder. Nisto, entretanto, Rebeca deixou à mostra quão escorregadia é a inclinação da mente humana tão logo se permite um mínimo sequer. Mas, ainda que deficiência e fraqueza obscureçam a fé, contudo não a extinguem. Enquanto isso, nos previnem de quão solicitamente nos convenha depender da boca de Deus, e ao mesmo tempo confirmam o que já ensinamos: que a fé se dissipa, a não ser que seja sustentada pela Palavra, assim como em seus sinuosos devaneios teriam se desvanescido as cogitaçõesde Sara, de Isaque e de Rebeca, não fora que na obediência da Palavra elas fossem retidas pelo freio secreto de Deus.

João Calvino

IMPROCEDÊNCIA DA TESE DE QUE A FÉ NÃO DEVE SER DEFINIDA TÃO-SOMENTE DA PROMESSA DA GRAÇA, MAS TAMBÉM DAS AMEAÇAS DE CASTIGO

Na verdade, nem mesmo dou atenção aos ladridos de Pighi, nem de cães da mesma laia, quando investem contra esta restrição da fé à promessa da graça, como se, fragmentando a fé, apanhe só uma porção dela. De fato, admito, como já disse, que o objeto geral da fé, como dizem eles, é a verdade de Deus, quer esteja a ameaçar, quer esteja a inculcar a esperança da graça. Daí o Apóstolo atribuir isto à fé, a saber, que Noé temeu a destruição do mundo quando esta ainda não se divisava [Hb 11.7]. Se o temor do castigo iminente foi obra da fé, as ameaças não devem ser excluídas da definição. Certamente, isto é verdadeiro. Mas os caluniadores, sem razão, nos desacreditam, como se negássemos que a fé tem a ver com todos os elementos da Palavra de Deus. Ora, queremos destacar apenas estes dois pontos: primeiro, que ela nunca se firma até que haja chegado à promessa da graça; em segundo lugar, que não somos de outro modo por ela reconciliados a Deus, senão porque nos une a Cristo. Ambos esses pontos são dignos de nota. Buscamos uma fé que distinga dos réprobos os filhos de Deus; e dos incrédulos, os fiéis. Se alguém crê que Deus não só prescreve com justiça o que quer preceituar, mas deveras também ameaça, só por isso se chamará crente? Nada menos que isso. Portanto, a posição da fé não será firme, a não ser que se sustenha na misericórdia de Deus. Ora, a que propósito discorremos acerca da fé? Porventura não é para que possuamos o caminho da salvação? Como, porém, é fé salvífica, senão até onde nos insere no corpo de Cristo? Logo, nada há de absurdo, se em sua definição de tal modo lhe acentuamos o efeito principal e, à guisa de diferenciação, lhe anexemos ao gênero essa distinção que separa os fiéis dos incrédulos. Enfim, nesta doutrina os malévolos nada têm que lançar em rosto, sem que envolvam Paulo conosco na mesma censura, o qual, apropriadamente, chama ao evangelho “a palavra da fé” [Rm 10.8].

João Calvino

A FÉ SE FUNDAMENTA NA DIVINA PROMESSA DA GRAÇA

Constituímos por fundamento da fé a promessa graciosa, porque nela se apoia, com propriedade, a fé. Ora, ainda que a fé em tudo declare serDeus verdadeiro, quer ordene, quer proíba, quer prometa, quer ameace, e até obedientemente receba suas injunções, observe as determinações, atente para as ameaças, contudo começa propriamente da promessa: nela subsiste, nela termina. Pois a fé busca em Deus a vida, vida esta que não se acha em mandamentos, nem em formulários de penas, mas na promessa de misericórdia; e esta graciosa, porquanto uma promessa condicional, pela qual somos remetidos a nossas obras, não promete mais vida do que a que podemos encontrar em nós mesmos. Portanto, se não queremos que a fé trema e vacile, importa que a apoiemos na promessa de salvação que do Senhor se oferece livre e liberalmente; e mais em consideração de nossa miséria do que de nossa dignidade. Pelo que o Apóstolo aplica ao evangelho este testemunho: que ele é a palavra da fé [Rm 10.8], título do qual priva tanto aos preceitos quanto às promessas da lei, já que nada há que possa fundamentar a fé, senão aquela generosa embaixada mercê da qual Deus reconcilia consigo o mundo [2Co 5.18-20]. Daqui, também a freqüente correlação, no mesmo Apóstolo, de fé e evangelho, quando ensina que lhe fora confiado o ministério do evangelho “para a obediência da fé” [Rm 1.5], porque “ele é o poder de Deus para salvação de todo aquele que crê” [Rm 1.16], que “nele se revela a justiça de Deus de fé a fé” [Rm 1.17]. Nem é de admirar. Já que de fato e na verdade o evangelho é o “ministério da reconciliação” [2Co 5.18], nenhum outro testemunho suficientemente firme da divina benevolência se mostra para conosco, cujo conhecimento a fé busca para si. Portanto, quando dizemos que a fé há de arrimar-se à promessa de graça, não estamos negando que os fiéis abracem e sustenham em toda linha a Palavra de Deus, mas apontamos para a promessa de misericórdia como o alvo próprio da fé. Da mesma forma que devem os fiéis, de fato, reconhecer a Deus como Juiz e Vingador das impiedades, contudo, lhe contemplam também apropriadamente a clemência, posto que lhes é apresentado como misericordioso, tardo em irar-se e inclinado à benevolência para com todos, a derramar sua misericórdia sobre todas as suas obras [Sl 145.8, 9].

João Calvino

A FÉ CONTEMPLA, NÃO A PROSPERIDADE TERRENA, MAS A SALVAÇÃO E A VIDA ETERNA

Ora, na benevolência divina, à qual dizemos que a fé contempla, entendemos que se obtém a posse da salvação e da vida eterna. Ora, se não pode faltar-nos bem algum quando Deus nos acolhe sob sua proteção, é suficiente segurança de nossa salvação que ele nos testifique o amor que nos tem. “Mostre ele sua face”, diz o Profeta, “e seremossalvos” [Sl 80.3, 7, 19]. Do quê as Escrituras formulam esta síntese de nossa salvação: que, uma vez abolidas todas as inimizades, ele nos recebeu em sua graça [Ef 2.14, 15]. Com isto dão evidentemente a entender que, uma vez que Deus esteja reconciliado conosco, não resta o menor perigo de que todas as coisas não nos sucedam bem. Portanto, a fé, apreendendo o amor de Deus, tem as promessas da vida presente e da vida futura [1Tm 4.8], bem como a firme certeza de todas as coisas boas, a qual, porém, pode ser depreendida da Palavra. Ora, por certo a fé não promete longevidade, nem honra, nem riquezas nesta presente vida, uma vez que nada destas coisas quis o Senhor nos fosse destinado; pelo contrário, vivemos contentes com esta certeza: por mais que nos faltem muitas coisas que dizem respeito ao sustento desta vida, Deus, no entanto, jamais nos haverá de faltar. Mas, sua primordial certeza reside na expectação da vida futura que, pela Palavra de Deus, foi posta além de toda dúvida. Entretanto, quaisquer que sejam na terra as misérias e calamidades que esperem aqueles a quem Deus já abraçou com seu amor, não podem impedir que sua benevolência lhes seja a plena felicidade. Daí, quando queríamos exprimir a suma da bem-aventurança, mencionamos a graça de Deus, de cuja fonte nos emanam todas as espécies de bênçãos. E isto, a cada passo, se pode observar nas Escrituras: que somos encaminhados ao amor do Senhor que, vezes sem conta, trata não só da salvação eterna, mas até de qualquer outro bem nosso. Razão por queDavi canta: a bondade divina, quando é sentida no coração piedoso, é mais doce e mais desejável do que a própria vida [Sl 63.3]. Enfim, se tivéssemos tudo,segundo nosso desejo, mas vivêssemos incertos quanto ao amor ou ao ódio de Deus, nossa felicidade seria maldita, e por isso desditosa. Mas se Deus nos mostra seu rosto de Pai, até as próprias misérias nos serão para felicidade, pois se converterão em auxílio para a salvação. Assim é que Paulo, enfeixando todas as coisas adversas, entretanto se gloria de que não somos por elas separado do amor de Cristo [Rm 8.34-39], e em suas preces sempre parte da graça de Deus, da qual emana toda prosperidade. De maneira semelhante, Davi contrapõe o favor de Deus a todos os temores que nos conturbam. “Se porventura eu andar em meio à sombra da morte, não temerei males, porque tu estás comigo” [Sl 23.4]. E sentimos sempre vacilar-nos o espírito, a não ser que, contentes com a graça de Deus, nela busquemos sua paz, profundamente arraigados no que lemos no Salmo: “Feliz é o povo cujo Deus é o Senhor, e a nação a quem ele elegeu por sua herança” [Sl 33.12].

João Calvino

O TEMOR DE DEUS QUE NO CRENTE É FILIAL, NO INCRÉDULO É SERVIL

Mas o que João afirma, que “no amor não há temor, mas o perfeito amor lança fora o temor, porquanto o temor tem a ver com punição” [1Jo 4.18], em nada destrói estas postulações. Pois ele está falando do terror da incredulidade, do qual este temor dos fiéis difere muitíssimo. Ora, tampouco os ímpios temem a Deus só porque se arreceiem de incorrer-lhe no desagrado; o que ousariam, se deveras o pudessem impunemente; mas porque sabem estar ele armado do poder de represália, são sacudidos de pavor ao ouvir falar de sua ira. E também assim temem sua ira, porque a julgam sobrepairar-lhes ameaçadora, pelo que esperam a cada momento lhes haja de cair na cabeça.
Os fiéis, porém, como foi dito, não só temem a ofensa mais do que o castigo, nem são perturbados pelo medo de punição, como se lhes pendesse o castigo, mas também se tornam mais cautos para que não incorram nele. Assim o Apóstolo, quando fala aos fiéis: “Não vos enganeis”, diz ele, “porque por esse meio advém a ira de Deus sobre os filhos da desobediência” [Ef 5.6], não ameaça que sobre eles ela haverá de descer, mas os adverte a que pensem na ira do Senhor preparada para os ímpios, por causa dessas impiedades que enumerara, para que não queiram experimentá-la também eles mesmos. Todavia, raramente acontece que os réprobos se despertem e se sintam movidos pelas simples ameaças, senão que, já tardos e embotados por seu endurecimento, sempre que do céu Deus troveja com palavras, acirram ainda mais sua contumácia. Mas, tocados por sua mão, queiram ou não, são compelidos a temer. A este temor chamam geralmente servil e o contrastam ao temor natural e espontâneo que convém aos filhos. Introduzemoutros, sutilmente, uma espécie intermédia desse temor, visto que essa disposição servil e compulsória por vezes domina os ânimos de tal modo que se aproximam deliberadamente ao temor de Deus.

João Calvino

A FÉ REDUNDA EM TEMER A DEUS COMO O SENHOR E HONRÁ-LO COMO PAI

Além disso, o temor do Senhor, cujo testemunho a cada passo se atribui aos santos nas Escrituras, e o qual, em algumas ocasiões, se designa de “o começo da sabedoria” [Sl 111.10; Pv 1.7]; em outras, a própria sabedoria [Jó 28.28]; ainda que seja um e único, todavia emana de duplo afeto. Pois Deus tem em si a dignidade de Pai e de Senhor. E assim, quem o queira cultuar devidamente, diligenciará por mostrar-se não só ser-lhe filho obediente, mas também servo obsequioso. A obediência que se rende como seu Pai, o Senhor, mediante o Profeta, denomina honra; o serviço que se exibe como seu Senhor, denomina temor. “O filho”, diz ele, “honra ao pai e o servo honra a seu senhor. Se eu sou Pai, onde está minha honra? Se eu sou Senhor, onde está meu temor?” [Ml 1.6]. Mas, por mais que os distingas, vês como, ao mesmo tempo, um elemento se funde no outro. Portanto, o temor do Senhor deve ser a reverência amalgamada dessa honra e desse temor. Nem é de admirar se o mesmo ânimo agasalha a ambos esses sentimentos, pois aquele que pondera consigo que gênero de Pai Deus nos é tem suficiente razão, ainda que não existisse nenhum inferno para sentir maior horror de ofendê-lo do que de sofrer qualquer morte. Mas, por outro lado, segundo a desregrada inclinação de nossa carne para o vicioso impulso de pecar, para que a coibamos de todos os modos, nos é imposto igualmente lançar mão deste pensamento: que ao Senhor, sob cujo poder vivemos, é abominação toda iniqüidade, de cuja vingança não evadirão aqueles que, vivendo desprendidamente, porventura tenham provocado contra si sua ira.

João Calvino

A BIPOLARIDADE DA FÉ NA PALAVRA DE BERNARDO DE CLAREVAL

Nem de outra maneira discorre Bernardo quando, na quinta homília quanto à Dedicação do Templo, trata expressamente desta matéria: “Refletindo, digo-o, de quando em quando, pela benevolência de Deus, acerca de minha alma, parece-me que nela descubro como que, por assim dizer, dois aspectos contrários. Se a contemplo segundo é ela em si e de si, nada mais verdadeiro posso dizer dela, senão que se reduz a nada. Por que se faria necessário agora enumerar-lhe as misérias, uma a uma, quão saturada está de pecados, mergulhada em trevas, enredilhada em engodos, fervilhante de concupiscências, sujeita a paixões, repleta de ilusões, propensa sempre ao mal, inclinada a todo vício, por fim plena de ignomínia e confusão? Se de fato até mesmo todos nossos próprios atos de justiça, examinados à luz da verdade, são achados como se fossem trapos imundos[Is 64.6], então o que nos haverão de reputar nossos atos de injustiça? Se a luz que há em nós são trevas, quão grandes serão as próprias trevas! [Mt 6.23]. Que diremos, pois? Sem dúvida, o homem se tornou semelhante à fatuidade [Sl 144.4]; ele foi reduzido a nada; o homem é nada. Ora, como pode ser absolutamente nada aquele a quem Deus engrandece? Como pode ser nada aquele em favor de quem o coração divino inclinou? Cobremos alento, irmãos. Mesmo que nada somos em nosso coração, talvez algo de nós pode jazer escondido no coração de Deus, ó Pai das misericórdias, ó Pai dos miseráveis, quando para nós inclinas teu coração? Ora, teu coração está onde está teu tesouro [Mt 6.21]. Como, porém, somos teu tesouro, se nada somos? Todas as pessoas sãoassim diante de ti como se nada fossem; ele as considera como menos que nada [Is 40.17]. De fato, diante de ti, não dentro de ti; assim no juízo de tua verdade, não, porém, assim na inclinação da tua piedade. De fato, chamas as coisas que não são como se fossem [Rm 4.17]; portanto, não são, porque chamas as coisas que não são, e todavia são, porque as chamas. Ora, quanto a si, ainda que não sejam, em ti, contudo, são, de par com essa palavra de Paulo: ‘Não de obras de justiça, mas por aquele que chama’” [Rm 9.11]. Depois de haver falado Bernardo nestes termos, mostra ser admirável a relação que existe entre estas duas considerações: “Indubitavelmente, as coisas que são conexas entre si, não se destroem mutuamente.” Além disso, na conclusão declara mais ostensivamente, nestas palavras: “Agora, se em uma e outra destas considerações diligentemente examinarmos o que somos, com efeito em uma quão nada somos, na outra quão magnificados somos, creio que nossa glória se mostra moderada, mas talvez é até mais incrementada, por certo mais solidificada, visto que nos gloriemos não em nós, mas no Senhor [2Co 10.17]. Realmente, assim pensamos: se Deus decretou salvar-nos, seremos de pronto libertados: já nesse fato se pode cobrar alento. Mas, ascendendo a um posto de observação mais elevado, busquemos a cidade de Deus, busquemos-lhe o templo; busquemos-lhe a morada; busquemos-lhe a esposa. Não esqueci um pelo outro; digo-o, porém, com temor e reverência: ‘Nós o somos, afirmo, mas no coração de Deus; nós o somos, mas por dignificação dele, não por dignidade nossa.’”

João Calvino

domingo, 19 de agosto de 2018

A FÉ NÃO VACILA ENTRE A ESPERANÇA E O MEDO, ATUADA ORA POR AQUELA, ORA POR ESTE

Ao afirmar isso, não é meu propósito aprovar a perniciosa filosofia ou fantasia que sustentam hoje alguns semipapistas. Ora, visto que não lhes é possível defender essa grosseira dúvida que tem sido ensinada nas escolas, ocultam-se em outra invencionice, de sorte a tornar a confiança mesclada com a incredulidade. Admitem que, enquanto temos nossos olhos postos em Cristo, encontramos nele motivo suficiente para esperar; porque, não obstante, sendo nós sempre indignos de todas essas benesses que em Cristo se nos oferecem, querem que flutuemos e vacilemos à vista de nossa indignidade. Em suma, de tal modo colocam a consciência entre a esperança e o medo, que este oscila para cá e para lá, mediante intermitências e vacilações. Aliás, a esperança e o medo de tal modo relacionam-se entre si que, em despontando aquela, este é reprimido; em ressurgindo este, aquela de novo tomba por terra. E assim Satanás, quando já vê que agora nada valem aquelas abertas maquinações com que costumara anteriormente enfraquecer a certeza da fé, tenta miná-la através de artifícios indiretos. De que natureza, porém, será essa confiança que, freqüentemente, cederá ao desespero? Se contemplas a Cristo, dizem eles, infalível te é a salvação; se te volves a ti mesmo, infalível é a condenação. Logo, necessário se faz que alternadamente reine em teu espírito a desconfiança e a boa esperança. Como se, de fato, devêssemos pensar de Cristo como estando distante e não antes a habitar em nós! Ora, uma vez que dele aguardamos a salvação, não porque nos pareça distante, mas porque a nós, enxertados em seu corpo, não só nos faz participantes de todos os seus benefícios, mas também de si próprio. Conseqüentemente, assim lhes reverto este argumento: Se a ti mesmo contemplas, certa é a condenação; mas, uma vez que Cristo de tal modo te comunicou todos os seus benefícios, que todas as suas coisas são tuas, que te faz membro de seu corpo e, melhor, um com ele, sua justiça cobre teus pecados, sua salvação abole tua condenação. Ele próprio, com sua dignidade, se interpõe para que tua indignidade não se exiba à vista de Deus. E isso é tão certo que de modo algum devemos apartar Cristo de nós, nem nós dele, mas manter solidamente esta comunhão pela qual intimamente nos uniu a si. Desta forma nos ensina o Apóstolo: “O corpo, na verdade, está morto por causa do pecado, mas o Espírito de Cristo, que habita em vós, é vida por causa da justiça” [Rm 8.10]. Segundo a trivialidade desses semipapistas, o Apóstolo deveria dizer: “Cristo, na verdade, tem vida em si, mas vós, visto que sois pecadores, permaneceis sujeitos à morte e à condenação.” Mas realmente ele fala de maneira bem outra, pois ensina que esta condenação que em nós mesmos merecemos foi tragada pela salvação de Cristo; e, para confirmar isto, usa daquela razão que referi: que Cristo não está fora de nós, mas habita em nós; não só se nos apega por um laço indiviso de associação, mas, mediante certa comunhão maravilhosa, dia a dia, mais e mais se une em um só corpo conosco, até que se faça conosco inteiramente um. Entretanto, tampouco renego o que disse pouco antes, ou, seja, que amiúde ocorrem certas interrupções da fé segundo sua fraqueza, quando ela oscila para cá ou para lá por entre violentos ataques. Assim, no denso nevoeiro das tentações, a luz lhe é sufocada. Entretanto, não importa o que aconteça, ela nunca deixa de inclinarse sempre para Deus.

João Calvino

O TEMOR NÃO SUPRIME A FÉ NEM IMPEDE A CERTEZA

Além disso, onde ensina que “desenvolvamos nossa salvação com temor e tremor” [Fp 2.12], não está exigindo outra coisa senão que nos acostumemos a atentar para o poder do Senhor, com sincera depreciação de nós mesmos. Com efeito, nada nos desperta tanto a depositar no Senhor a confiança e certeza de espírito quanto a falta de confiança em nós mesmos e a ansiedade oriunda da consciência de nossa situação calamitosa. Deve-se tomar neste sentido o que lemos no Profeta: “Na multidão de tua bondade, adentrarei teu templo, adorarei em temor” [Sl 5.7]; onde, com muito tino, une a ousadia da fé, que se arrima na misericórdia de Deus com o reverente temor, que necessariamente se apodera de nós cada vez que, comparecendo ante a presença da divina Majestade, percebemos por seu esplendor quão grande é nossa indignidade. Salomão também, com razão, quando pronuncia ser bem-aventurado o homem que mantém o próprio coração em temor constante, visto que, por seu endurecimento, é ele precipitado no mal [Pv 28.14]. Mas ele se refere a um certo gênero de temor que nos faz mais cuidadosos e prudentes, sem nos afligir até a desesperação; isto é, quando nosso ânimo em si mesmo confuso se reconforta em Deus; em si mesmo abatido, se ergue; de si mesmo desconfiado, se apoia na esperança que tem depositado nele. Portanto, nada impede que os fiéis tenham temor e ao mesmo tempo desfrutem do consolo da plena segurança, posto que às vezes ponderam sua vaidade, e outras elevam sua mente a Deus. Como, dirá alguém, é possível que tenham morada no mesmo ânimo o pavor e a fé? Exatamente como, em contrapartida, assim procedem o torpor e a ansiedade. Ora, ainda quando os ímpios busquem para si a impassividade, de modo que nenhum temor de Deus os inquiete, todavia, o juízo de Deus os acossa, para que não alcancem o que desejam. Dessa forma, nada impede que Deus exercite os seus à humildade, de sorte que, ao militar valentemente, a si se contenham sob o freio do comedimento. E de fato transparece do contexto haver sido esse o desígnio do Apóstolo, onde assinala como causa do temor e tremor o beneplácito de Deus, mercê do qual confere aos seus não só o benquerer, mas também incansavelmente o executar [Fp 2.12, 13]. Convém tomar neste sentido o vaticínio do Profeta: “Os filhos de Israel tremerão diante de Deus e de sua bondade” [Os 3.5]; porquanto a piedade não só gera a reverência por Deus, mas ainda imbui o próprio dulçor e suavidade da graça ao homem em si mesmo abatido, ao mesmo tempo de temor e admiração, de sorte que dependa de Deus e se sujeite humildemente a seu poder.

João Calvino

A CERTEZA DA FÉ NÃO É AFETADA PELO DEVIDO TEMOR DE DEUS

Não obstante, há outra espécie de “temor e tremor” [Fp 2.12], a qual está mui longe de empobrecer a certeza da fé, a qual, ao contrário, é estabelecida com maior firmeza. Na verdade, isto se dá enquanto os fiéis, ou pensam que seus exemplos são conferidos à guisa de avisos da divina vingança contra os ímpios, solicitamente se munem de prudência para que não lhes aconteça que provoquem contra si a ira de Deus mediante as mesmas ofensas, ou, quando examinam em seu íntimo sua própria miséria, aprendem a depender inteiramentedo Senhor, sem o qual percebem que são mais instáveis e efêmeros que qualquer vento. Ora, o Apóstolo, ao falar das punições com as quais o Senhor castigara outrora ao povo de Israel, incute terror aos Coríntios para que não se enredilhem em males semelhantes [1Co 10.4-11]. Com isso, não pretende abalar sua confiança; ao contrário, apenas lhes sacode o torpor da carne, mediante o qual a fé costuma ser mais quebrantada que fortalecida. Tampouco, quando pela queda dos judeus se mune de razão para exortar que “aquele que está de pé, olhe que não caia” [1Co 10.12], nos prescreve que vacilemos, como se estivéssemos pouco certos de nossa firmeza, mas apenas desfaz a arrogância e o temerário excesso de confiança de nossa própria força, para que, sendo os judeus rejeitados, os gentios, recebidos em seu lugar, não exultem desmesuradamente [Rm 11.20, 21]. Ainda que aí fale não só aos fiéis, mas, em sua consideração ele inclui também os hipócritas, os quais se gloriavam apenas na aparência exterior. Pois não adverte a homens individualmente; mas, estabelecida comparação entre judeus e gentios, depois que mostrara que aqueles tinham sofrido as justas punições de sua incredulidade e ingratidão, a saber, que haviam sido rejeitados, também a estes exorta a que não percam, enchendo-se de orgulho e exaltando-se a si mesmos, a graça da adoção que há pouco lhes fora transferida. Mas, da mesma forma que naquela rejeição dos judeus alguns sobravam dentre eles, os quais de modo algum apostataram do pacto de adoção, assim podiam alguns erguer-se dentre os gentios, os quais, sem genuína fé, apenas se inflariam de estulta confiança carnal; e assim, para sua ruína, abusariam da benignidade de Deus. Com efeito, ainda que se admita que se aplique aos eleitos e fiéis esta referência, não haverá nisso inconveniente algum. Ora, uma coisa é reprimir a temeridade que dos resquícios da carne amiúde se insinua aos santos sorrateiramente, para que não se esbaldem em vã confiança; outra é afligir de temor a consciência, de sorte que não descanse em plena segurança na misericórdia de Deus.

João Calvino

FIRMADA NA DIVINA PALAVRA, A FÉ JAMAIS CEDE TERRENO À INCREDULIDADE NEM SE DEIXA ABATER-SE POR ELA

Para conter a tais investidas, a fé se arma e se guarnece da Palavra do Senhor. E quando tentação dessa natureza a assalta, a saber, que Deus nos é inimigo, uma vez que se nos mostra hostil, a fé replica em contrário: enquanto nos aflige, Deus é também misericordioso; já que seu castigo provém antes do amor que da ira. Quando desta cogitação é ela acutilada, a saber, que Deus é vingador das iniqüidades, ela usa como escudo o perdão preparado para todos os delitos, sempre que o pecador se volve para a clemência do Senhor. De sorte que a mente piedosa, por mais que se veja, de modo extraordinário, inquieta e atormentada, no entanto emerge, afinal, sobre todas as dificuldades; nem de modo algum consente que lhe seja tirada a confiança na misericórdia divina. Ao contrário, todas que a afligem e a atormentam se convertem numa mais sólida garantia desta mesma confiança. Por prova deste fato é que os santos, quando a seus olhos parecem ser extremamente acossados pela vingança divina, no entanto junto a ele depõem suas recriminações; e quando parece que de modo algum serão ouvidos, não menos o invocam. Ora, a que fim serviria lamuriar-se perante aquele de quem nenhuma consolação esperariam? Na verdade, jamais lhes passaria pela mente invocálo, a não ser que cressem que ele já lhes preparou algum socorro. Assim, os discípulos em quem Cristo repreendeu a exigüidade da fé, queixavam-se de que estavam a perecer, contudo imploravam-lhe o auxílio [Mt 8.25]. Aliás, tampouco, enquanto os verbera por causa da fé tão ínfima, os exclui do quadro dos seus, nem os inclui no número dos incrédulos; antes, os incita a desvencilhar-se da falha.
Portanto, voltamos a afirmar o que já dissemos um pouco antes: jamais se pode arrancar a raiz da fé do coração piedoso; antes, cravada em seu mais íntimo recesso, aí adere, por mais que pareça inclinar-se sacudida para cá ou para lá: sua luz a tal ponto jamais se extingue ou se deixa sufocar, que não se deixa esconder nem mesmo debaixo de cinza; e, com este exemplo, se evidencia que a Palavra, que é uma semente incorruptível, produz fruto semelhante a si mesma, cujo gérmen nunca fenece nem de todo perece. E isto é tão certo, que os santos jamais encontram maior motivo e ocasião de desespero do que quando sentem, ao julgar pelos acontecimentos, que a mão de Deus se ergue para destruí-los. Contudo, Jó afirma que a esperança lhe haveria de ser estendida, e que se viesse a ser por ele morto, não haveria de deixar, por isso, de esperar nele [Jó 13.15]. Assim é, de fato: a incredulidade não reina nos recessos do coração dos piedosos, mas os assedia de fora; nem os fere mortalmente com seus dardos, mas apenas os molesta, ou, melhor, os golpeia de modo que o ferimento seja curável. Pois a fé, segundo Paulo ensina, nos é por escudo [Ef 6.16]: como anteparo aos dardos, de tal modo lhes sustém o impacto que os desvia totalmente ou, ao menos, os aplaca, para que não nos penetrem às partes vitais. Portanto, quando a fé é assim acometida, é precisamente como se um soldado, de outro modo firme, se visse forçado por violento golpe de lança a mover o pé e ceder um pouco; quando, porém, a própria fé é ferida, é precisamente como se o escudo recebesse do embate alguma quebradura, contudo de modo que não seja traspassado. Ora, a mente piedosa, que sempre se ergue até este ponto, dirá com Davi: “Se eu tiver de andar no meio da sombra da morte, não temerei males, porque tu estás comigo” [Sl 23.4]. Andar na escuridão da morte é sem dúvida apavorante, e seja o que for que aconteça aos fiéis, sem importar o que tenham de firmeza, não sentirão horror extremo. Mas, como se impõe em seu espírito o pensamento de que têm a Deus presente, e que ele cuida de sua salvação, o temor é, ao mesmo tempo, vencido pela confiança. Quantos, porém, como Agostinho1 – e não importa quais sejam os engenhos de guerra –, que contra nós nos assalta o Diabo, uma vez que não se assenhoreia do coração, onde a fé reside, é lançado fora. E assim, se há de julgar-se pelo resultado, os fiéis não só escapam ilesos de todo conflito, de sorte que, renovado o alento, pouco depois se vêem de novo preparados para descer à arena, mas também se cumpre o que João diz em sua primeira Epístola canônica: “Esta é a vitória que vence o mundo: nossa fé” [1Jo 5.4]. Ora, não apenas em uma só batalha, ou em umas poucas, ou contra alguma investida, afirma ele haver nossa fé de ser vencedora, mas é vitoriosa sobre o mundo todo, ainda que seja mil vezes atacada.

João Calvino

A BIPOLARIDADE DA EXPERIÊNCIA DE FÉ NA PERSPECTIVA DO ENSINO DE PAULO

A um e outro desses dois aspectos, o Apóstolo ensina magistralmente, em diversos lugares, pois quando diz que “conhecemos em parte e em parte profetizamos”, e que “vemos como por um espelho em enigma” [1Co 13.9, 12], põe em relevo quão reduzida porção dessa sabedoria realmente divina nos é dada na presente vida. Ora, ainda que essas palavras não indiquem simplesmente que, por quanto tempo gememos sob o fardo da carne, a fé é imperfeita, mas ainda que de nossa imperfeição resulte que se nos faz necessário exercitar-nos a aprender continuamente, contudo o Apóstolo indica que em nossa parca medida e limitações não se pode compreender o que é imensurável. E Paulo proclama isso em toda Igreja: mas a cada um de nós sua própria ignorância constitui obstáculo e impedimento, para que não se chegue tão perto quanto seria de se desejar. Com efeito, ele mesmo prova em outro lugar quão grande é a certeza que nos propicia, mesmo uma gotícula, quando afirma que, por meio do evangelho, de face descoberta e sem o estorvo de nenhum véu, com tão grande eficácia contemplamos a glória de Deus para que sejamos transformados à sua própria imagem [2Co 3.18]. Em tais envoltórios de ignorância é inevitável que ao mesmo tempo nos vejamos muitíssimo enredilhados por dúvida e vacilação, uma vez que nosso coração, por um como que natural instinto, propende de modo especial à incredulidade. Aqui sucedem tentações que, não só infinitas em número, mas variadas em natureza, de quando em quando nos assaltam com grande ímpeto. Acima de tudo, a própria consciência, oprimida pela gigantesca massa dos pecados, ora deplora e geme em seu íntimo, ora se acusa, ora murmura em silêncio, ora irrompe em franco tumulto. Portanto, quer as coisas adversas manifestem a ira de Deus, quer em si mesma ache a consciência argumento e matéria, daí a incredulidade saca armas e apetrechos para destroçar a fé, a qual por fim se destina perpetuamente a este propósito: que, julgando ser-nos Deus adverso e indiferente, não esperemos dele bem algum, nem o temamos como a um inimigo capital.

João Calvino

A FÉ, POR MAIS INCIPIENTE E RUDIMENTAR QUE SEJA, CRESCE EM CONTÍNUO VIGOR E CERTEZA

Eis a síntese. Quando inicialmente é instilada em nossa mente, mesmo que seja apenas uma gota mínima de fé, começamos então a contemplar a face de Deus, plácida, serena e propícia para conosco. É verdade que isto à distância; contudo, com visão de tal modo segura, saibamos que de maneira alguma estamos sofrendo de alucinação. Além disso, quanto mais avançamos – uma vez que nos importa avançar continuamente –, atendendo a um progresso de antemão estabelecido, mais nos vamos aproximando da visão dele; e já um tanto mais segura, e até pela própria continuidade, mais familiar ele se nos torna. E assim vemos que a mente iluminada pelo conhecimento de Deus, de início se mantém envolta em muita ignorância, a qual vai pouco a pouco se dissipando. Contudo, ao ignorar certos pontos, ou ao visualizar mais obscuramente aquilo que contempla, não é impedida de fruir de cristalino conhecimento da divina vontade para consigo, o qual na fé ocupa o primeiro e mais importante lugar. Pois, como alguém encerrado em um cárcere recebe os raios do sol apenas obliquamente, os quais brilham como que pela metade através de uma janela bem estreita, está de fato privado da livre contemplação do sol, todavia, com os olhos mira fulgor não ambíguo e desfruta de seu benefício, assim, presos pelos grilhões do corpo terreno, por mais que estejamos por toda parte rodeados de muita escuridão, no entanto somos iluminados por uma firme certeza, quanto nos é suficiente, pela luz de Deus a luzir para exibir sua misericórdia, ainda que apenas um breve momento.

João Calvino

O PERENE CONFLITO DO CORAÇÃO CRENTE, DIVIDIDO ENTRE O PODER DO ESPÍRITO E A TENTAÇÃO DA CARNE, DECORRÊNCIA DA IMPERFEIÇÃO DA FÉ

Para que se compreenda isto, faz-se necessário retornar àquela distinção de carne e espírito de que fizemos menção em outro lugar, a qual se patenteia mui lucidamente neste ponto. Ora, o coração piedoso sente em si tal distinção, uma vez que, em parte, é inundado de dulçor ante o reconhecimento da bondade divina; em parte é sufocado pelo amargor ante o senso de sua calamidade; em parte, reclina-se na promessa do evangelho; em parte, se inflama pelo testemunho de sua iniqüidade; em parte, exulta com a expectação da vida; em parte, se apavora com a morte. Variação esta que decorre da imperfeição da fé, uma vez que no curso da presente vida nunca as coisas vão tão bem conosco que, curados de todo ataque de desconfiança, somos plenamente plenificados e possuídos de fé. Daqui esses conflitos: quando a desconfiança que se apega aos remanescentes da carne se insurge para atacar a fé que foi interiormente concebida. Se, pois, a certeza é misturada de dúvida na mente piedosa, porventura não volveremos sempre ao questionamento de que a fé não é um conhecimento certo e líquido da vontade divina para conosco, antes, um conhecimento obscuro e confuso? De modo algum, por certo. Pois, nem se formos puxados em direções diversas por variados pensamentos, somos por isso diretamente alijados da fé; nem se de todos os ladosformos premidos pela inquietação da desconfiança, por isso mergulhamos no abismo; nem se formos violentamente sacudidos, somos por isso derrubados de nosso pedestal. Com efeito, deste conflito o fim será sempre que a fé vence, afinal, essas dificuldades, pelas quais assim assediada, parece periclitar.

João Calvino

A CERTEZA QUE A FÉ NOS CONFERE DE FORMA ALGUMA EXCLUI A TENTAÇÃO DE DÚVIDA E INQUIETUDE, ORA MAIS, ORA MENOS SENTIDA

Com efeito, dirá alguém: enfaticamente outra é a experiência dos fiéis que, ao reconhecerem a graça de Deus para consigo, não só são tentados por inquietude, que freqüentemente os acossa, mas até amiúde tremem de gravíssimos temores, tão grande é a veemência das tentações desenfreadas para abalar-lhes a mente; o que não parece coadunar-se muito com essa certeza de fé! Conseqüentemente, impõese-nos resolver esta questão, se queremos que a doutrina supradiscutida se mantenha firme. Nós, de fato, enquanto ensinamos que a fé deve ser certa e segura, não imaginamos alguma certeza que jamais possa ser tangida por alguma dúvida, nem uma segurança que não possa ser atingida por alguma inquietude; senão que, antes, dizemos que os fiéis têmperpétuo conflito com sua própria desconfiança. Tão longe está de que coloquemos sua consciência em algum plácido repouso, o qual não seja absolutamente importunado por nenhuma perturbação! Todavia, por outro lado, de qualquer maneira que sejam afligidos, negamos que decaiam e se apartem daquela segura confiança que conceberam da misericórdia de Deus. Nenhum exemplo de fé é mais insigne ou mais memorável do que aquele que a Escritura propõe em Davi, especialmente se visualizarmos todo o curso de sua vida. Contudo, ele mesmo com freqüência se queixa de estar mui longe de desfrutar perenemente da paz de espírito. Bastará citar alguns de seus numerosos testemunhos. Enquanto censura os conturbados sentimentos de sua alma, que outra coisa censura senão sua própria incredulidade? “Por que te agitas”, diz ele, “ó minha alma, e por que te perturbas dentro de mim? Espera em Deus” [Sl 42.5, 11; 43.5]. Certamente que aquela consternação era evidente sinal de desconfiança, como se julgasse abandonado por Deus. Confissão ainda mais ampla se lê em outro lugar: “Eu disse em minha precipitação: lançado fui da vista de teus olhos” [Sl 31.22]. Em outro lugar também contende consigo mesmo em ansiosa e angustiada perplexidade; na verdade, formula uma indagação acerca da própria natureza de Deus: “Porventura esqueceu-se Deus de ser misericordioso? Porventura rejeitará ele para sempre?” [Sl 77.7, 9]. Mais duro é o que segue: “E eu disse: Isto constitui minha enfermidade; mas eu me lembrei dos anos da destra do Altíssimo” [Sl 77.10]. Ora, como que desesperado, a si mesmo se condena à morte; e não apenas se confessa sacudido de dúvida, mas, como se estivesse sucumbido no conflito, até mesmo imagina que nada mais lhe resta, porque pressupõe que Deus o havia abandonado, e lhe voltara a mão para destruí-lo, a qual outrora lhe era para auxílio. Por isso, não sem causa, ele exorta sua alma a que retorne a sua quietude [Sl 116.7], porque havia experimentado o que era ser arrojado por entre ondas turbulentas. E no entanto, o que é admirável, por entre esses abalos a fé sustenta os corações dos piedosos; e na verdade alcança o viço da palmeira [Sl 92.12], de sorte a enfrentar a todos e quaisquer incômodos e se eleva para o alto; assim como Davi, quando poderia parecer esmagado, ainda que incriminando a si mesmo, não desistiu de buscar a Deus. Aquele que, deveras, lutando com a fraqueza pessoal, em suas ansiedades porfia para com a fé, em larga medida já é vencedor. O que é lícito concluir desta citação e similares: “Espera no Senhor. Sê forte; ele te fortalecerá o coração. Espera no Senhor” [Sl 27.14]. Davi a si mesmo se acusa de desânimo e, repetindo o mesmo duas vezes, se confessa seguidamente sujeito a muitos sobressaltos. Entrementes, não apenas se desagrada a si próprio nessas falhas, mas aspira e se esforça em corrigi-las. Por exemplo, caso se compare com o rei Acaz, logo se verá perfeitamente a diferença entre ambos. Isaías é enviado a levar remédio à ansiedade do rei ímpio e hipócrita. Ele lhe fala com estas palavras: “Estejas em guarda e aquieta-te; não te atemorizes” etc. [Is 7.4]. Que faz ele ao ouvir isto? Como fora dito antes, que o coração lhe foi abalado como as árvores da floresta são sacudidas pelo vento [Is 7.2], embora ouvisse a promessa, não cessou de apavorar-se. Portanto, esta é a mercê e castigo próprios da infidelidade: estremecer de tal forma, que aquele que não abre para si a porta, pela fé, na tentação se afasta de Deus; em contraposição, porém, os fiéis, a quem vultoso volume de tentações encurva e quase esmaga, delas se alteiam constantemente, ainda que não sem embaraço e dificuldade. E já que são cônscios da própria fraqueza de espírito, oram com o Profeta: “Não retires totalmente de minha boca a palavra da verdade” [Sl 119.43]. Com essas palavras somos ensinados que eles amiúde emudecem, como se sua fé fosse prostrada, os quais, no entanto, não decaem nem viram as costas; ao contrário, prosseguem sua luta, e orando espicaçam sua letargia, para que, ao menos, por sua própria complacência não se entreguem à preguiça.

João Calvino

A FÉ É SÓLIDA CONFIANÇA NAS PROMESSAS DIVINAS E FIRME APROPRIAÇÃO DA SALVAÇÃO QUE DEUS NOS PROPICIA

Aqui se revolve o principal gonzo da fé, a saber, que não julguemos que as promessas de misericórdia que o Senhor nos oferece são verdadeiras somente fora de nós; ao contrário, que antes as façamos nossas, abraçando-as interiormente. Desta admissão, afinal, nasce aquela confiança que, em outro lugar [Rm 5.1], o mesmo Paulo chama paz, salvo se alguém preferir deduzir a paz da mesma confiança. Ora esta paz consiste numa segurança que acalma e tranqüiliza a consciência diante do tribunal de Deus, segurança sem a qual, necessariamente, se sentiria sacudida e quase dilacerada por tumultuada perturbação, caso permita esquecer-se de Deus e de si mesma, adormecendo por um momento. E, de fato, apenas por um momento, porque não desfruta por longo tempo desse mísero esquecimento, sem que seja lancinada pela lembrança do juízo divino que a cada passo se apresenta aos olhos da alma. Em suma, não há nenhum outro verdadeiramente fiel senão aquele que, persuadido por sólida convicção de que Deus é seu Pai propício e benévolo, por sua benignidade lhe promete todas as coisas; e aquele que, confiando nas promessas da divina benevolência para consigo, antecipa infalível expectativa de salvação. Como o Apóstolo assinala nestas palavras: “Se tão-somente conservarmos confiança até o fim, e a glóriada esperança” [Hb 3.6]. Porque, ao expressar-se assim, declara que ninguém espera no Senhor como deve senão aquele que se gloria confiadamente de que é herdeiro do reino celeste. Afirmo que ninguém é fiel senão aquele que, arrimado na certeza de sua salvação, zomba confiadamente do Diabo e da morte, como somos ensinados dessa magnífica exclamação sentenciosa de Paulo: “Estou persuadido de que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as potestades, nem as coisas presentes, nem as futuras nos poderão separar do amor de Deus, com que nos abraça em Cristo Jesus” [Rm 8.38, 39]. Assim, o mesmo Apóstolo não julga que os olhos de nossa mente possam ser bem iluminados de outro modo, a não ser que divisemos claramente qual seja a esperança da herança eterna para a qual fomos chamados [Ef 1.18]. E esta é a doutrina que ensina a cada passo: que somente compreendemos realmente a bondade de Deus quando estamos plenamente seguros dela.

João Calvino

A FÉ É CONHECIMENTO CERTO E SEGURO, COMO SE ACHA FUNDAMENTADO EM DEUS E SUA PALAVRA

Acrescentamos que a fé é um conhecimento certo e seguro, cuja qualificação expressa a mais firme constância de sua persuasão. Pois, como a fé não se contenta com opinião dúbia e mutável, assim tampouco com uma noção obscura e confusa; pelo contrário, requer certeza plena e fixa, como costuma ser em se tratando de coisas experimentadas e comprovadas. Ora, a incredulidade tão profunda e arraigadamente se nos apega ao coração e a tal ponto lhe somos propensos, que sem árduo embate cada um não se persuade daquilo que todos confessam com a boca: que Deus é fiel. Especialmente quando se confronta uma situação real, a insegurança de todos põe a descoberto a falha que jazia oculta. Por isso, não sem motivo o Espírito Santo enaltece com tão nobres títulos a autoridade da Palavra de Deus, a fim de fornecer remédio a esta enfermidade e para que demos total crédito a Deus em suas promessas. “As palavras do Senhor são palavras puras”, diz Davi, “prata fundida em excelente cadinho, purificada sete vezes” [Sl 12.6]. De igual modo: “A palavra do Senhor é refinada, escudo é a todos os que nele confiam” [Sl 18.30]. Salomão, porém, confirma o mesmo com quase os mesmos termos: “Toda palavra de Deus é refinada” [Pv 30.5]. Mas, visto que nesta demonstração se consome o Salmo 119, seria supérfluo nesta matéria recitar mais textos da Escritura. Sem dúvida, sempre que Deus, em tais termos, nos recomenda sua Palavra, indiretamente está a censurar-nos a incredulidade, porquanto ele não visa a outro propósito, senão que nos erradique do coração dúvidas tão disparatadas. Muitíssimos há tambémque de tal modo concebem a misericórdia de Deus, que daí recebem um mínimo de consolação, pois são, ao mesmo tempo, constringidos por mísera ansiedade, enquanto duvidam que ele lhes será misericordioso, porque encerram dentro de limites demasiadamente estreitos aquela própria clemência da qual parecem estar mui persuadidos. Com efeito, assim ponderam consigo que certamente ela é grande e copiosa, derramada sobre muitos, a todos acessível e preparada; contudo, que é incerto se porventura também a si ela haja de chegar, ou, antes, se porventura eles haverão de chegar a ela. Com este pensamento, é como se parasse em meio do caminho; não de pensamento pela metade. Conseqüentemente, longe de levar tranqüilidade e segurança ao espírito, o perturba ainda mais com dúvidas e incerteza. Bem outro é o sentimento de plhrofori,aj [pl@r(ph(rías – plena certeza] que nas Escrituras sempre se atribui à fé; isto é, que elimina a dúvida acerca da bondade de Deus a nós claramente manifesta. Mas, isto não pode acontecer sem que sintamos verdadeiramente seu dulçor e o experimentemos em nós mesmos. Por isso é que o Apóstolo deriva da fé a confiança, e desta, por outro lado, a ousadia. Pois assim fala ele: “Mediante Cristo temos nós ousadia e acesso em confiança, que é por meio da fé nele” [Ef 3.12]; palavras com as quais mostra absolutamente que não há fé correta a não ser quando ousamos apresentar-nos perante Deus com ânimo sereno. Esta ousadia não nasce senão da sólida confiança na benevolência e salvação divinas. Tão verdadeiro é isso que, com bastante freqüência, se usa o termo fé em lugar de confiança.

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A FÉ É CONHECIMENTO, E ESTE DE CUNHO TRANSCENDENTE, NÃO SENSÓRIO, PERCEPTIVO OU ESPECULATIVO

Examinemos de novo, agora, cada parte desta definição de fé, as quais, perscrutadas diligentemente, nada deixará de duvidoso, segundo penso. Quando à fé chamamos conhecimento, não queremos dizer compreensão que costuma ser das coisas que caem sob a percepção sensória humana. Pois a fé está tão acima da percepção sensória, que se torna indispensável que o entendimento humano se eleve sobre si mesmo para chegar a ela. Contudo, nem mesmo quando a ela chega, compreende o que percebe. Mas, enquanto persuadida do que não apreende, pela própria certeza da persuasão mais entende que se percebesse algo humano por sua própria capacidade. Daí, admiravelmente a descreve Paulo, que a chama “compreender, com todos os santos, qual seja o comprimento, a largura, a profundidade e a altura, e conhecer o amor de Cristo que ultrapassa todo conhecimento” [Ef 3.18, 19]. Pois quis significar que é de todos os modos infinito o que nossa mente abraça pela fé, e que esse gênero de conhecimento é muito mais elevado que todo saber humano. Contudo, porque a seus santos fez o Senhor manifesto o segredo de sua vontade, o qual estivera oculto por séculos e gerações [Cl 1.26], com razão mui procedente é a fé freqüentemente chamada, nas Escrituras, pleno conhecimento [Ef 1.17; 4.13; Cl 1.9; 3.10; 1Tm 2.4; Tt 1.1; Fm 6], por João, entretanto, apenas conhecimento quando testemunha que os fiéis bem sabem ser filhos de Deus [1Jo 3.2]. E de fato o sabem com certeza, porém firmados mais pela persuasão da verdade divina do que instruídos por demonstração racional. Isto indicam também as palavras de Paulo: “Enquanto habitamos neste corpo, peregrinamos longe do Senhor, porquanto andamos por fé, não por visão” [2Co 5.6, 7], palavras com as quais mostra que aquelas coisas que assimilamos pela fé estão, no entanto, distantes de nós e nos escapam à visão. Do quê afirmamos que o conhecimento da fé consiste mais em certificação do que em apreensão.

João Calvino