Cristo e João Batista, dizem eles, em suas pregações, primeiro exortam o povo
ao arrependimento, em seguida acrescentam que o reino dos céus está próximo [Mt3.2; 4.17]. Os apóstolos recebem a incumbência de pregar a mesma coisa, ordem
que Paulo também seguiu, segundo a menção que Lucas faz [At 20.21]. E todavia,
enquanto se prendem supersticiosamente no encadeamento das sílabas, não atentam
para o sentido pelo qual se ligam entre si essas palavras. Ora, enquanto Cristo, o
Senhor, e João Batista, pregam desta maneira: “Arrependei-vos, pois, porque o reino
dos céus está próximo” [Mt 3.2], porventura não derivam da própria graça e da
promessa de salvação a causa do arrependimento? Logo, suas palavras valem exatamente
como se estivessem afirmando: “Visto que o reino dos céus está próximo, por
isso arrependei-vos.” Ora, Mateus, quando narrou que João pregara nesses termos,
ele estava ensinando que nele se cumpriu o vaticínio de Isaías, em relação à voz que
clama no deserto: “Preparai o caminho do Senhor, fazei retas as veredas de nosso
Deus” [Mt 3.3; Is 40.3]. Mas, no Profeta, ordena-se que essa voz comece pela consolação
e alegre nova” [Is 40.1, 2].
Contudo, quando atribuímos à fé a origem do arrependimento, não sonhamos
algum espaço de tempo no qual se lhe dê à luz; ao contrário, queremos pôr à mostra
que o homem não pode aplicar-se seriamente ao arrependimento, a não ser que
reconheça ser de Deus. Mas, ninguém é verdadeiramente persuadido de que é de
Deus, salvo aquele que haja antes reconhecido sua graça. Estas coisas, porém, serão
mais lucidamente discutidas no próprio andamento da exposição. Talvez os tenha
enganado o fato de que muitos são quebrantados de sobressaltos de consciência ou
afeiçoados à obediência antes que sejam imbuídos do conhecimento da graça; com
efeito, antes mesmo que tenham sentido o gosto. E é este o chamado temor inicial
que alguns contam entre as virtudes, já que o vêem como muito parecido com verdadeira
e justa obediência. Aqui, porém, não se trata de quão variadamente Cristo nos
atraia a si, ou nos prepare para o cultivo da piedade: estou apenas afirmando que
não se pode achar retidão alguma onde não reina esse Espírito que Cristo recebeu
para que o comunicasse a seus membros. Digo, em seguida, de conformidade com
essa afirmação do Salmo [130.4]: “Em ti há propiciação, para que sejas temido”,
que ninguém jamais reverenciará a Deus, senão aquele que confiar que ele lhe é
propício; ninguém se cingirá de boa vontade para a observância da lei, senão aquele
que estiver persuadido de que suas expressões de obediência lhe são aprazíveis.
Esta deferência de Deus, em relevar-nos o demérito e tolerar os vícios, é sinal de seu
paterno favor. Esta exortação de Oséias também mostra Isto: “Vinde, retornemos ao
Senhor, porque ele nos apanhou e nos sarará; nos feriu e nos curará” [Os 6.1], pois
a esperança de perdão é adicionada como um acicate, para que os homens não adormeçam
em seus pecados.
Mas, carece de toda evidência de razão o desvario daqueles que, para começar
do arrependimento, prescrevem a seus neófitos certos dias durante os quais se exercitem
em penitência; passados, afinal, os quais, os admitem à comunhão da graça do evangelho. Falo da maior parte dos anabatistas, especialmente daqueles que exultam
sobremaneira em ser tidos como os espirituais, e de seus confrades, os jesuítas,
e gentalha afim. Tais frutos, evidentemente, são produzidos por esse espírito de
torvelinho que limita a uns poucos dias a penitência que ao homem cristão deve
prorrogar-se por toda a vida.
João Calvino