Outros o interpretam diferentemente, dizendo que
Cristo desceu às almas dos patriarcas que haviam morrido sob a lei, para que
lhes levasse a proclamação da redenção consumada, e as livrasse do cárcere onde
se mantinham encerradas. E para isto invocam, indevidamente, os testemunhos do
Salmo: “porque Deus haverá de quebrar as portas de bronze e as trancas de
ferro” [Sl 107.16]. De igual forma, de Zacarias: “que Deus redimirá os cativos
do poço em que não havia água” [Zc 9.11]. Como, porém, o Salmo vaticina os
livramentos daqueles que, cativos em regiões longínquas, estão confinados em
cadeias, Zacarias, porém, compara a calamidade babilônica a um poço ou abismo
profundo e seco em que o povo fora lançado, e ao mesmo tempo ensina que a
salvação de toda a Igreja é a saída das profundezas inferiores. Não sei
como haja acontecido que a posteridade imaginasse existir um lugar subterrâneo
a que deram o nome de limbo. Mas, a despeito de esta fábula contar com grandes
autores, e é hoje também seriamente defendida por muitos como sendo a verdade,
entretanto não passa de fábula. Ora, a idéia de encerrar as almas dos mortos em
um cárcere é pueril. Que necessidade, pois, houve de a alma de Cristo descer
ali para que ele as libertasse? De bom grado, aliás, admito que Cristo as haja
iluminado pelo poder de seu Espírito, de sorte que reconhecessem que a graça
foi então exibida ao mundo, a qual haviam degustado apenas em esperança. E, com
razão provável, aqui se pode aplicar a passagem de Pedro, na qual ele diz que
Cristo foi e pregou aos espíritos que estavam em uma “torre de observação”, que
traduzem comumente por prisão [1Pe 3.19]. Ora, até mesmo o contexto nos conduz
a isto: que os fiéis que morreram antes desse tempo foram co-participantes
conosco da mesma graça, pois que Pedro daí amplia o poder da morte de Cristo,
que tenha ela penetrado até os mortos, enquanto as almas piedosas têm
desfrutado da visão atual dessa visitação, que haviam ansiosamente esperado.
Por outro lado, fez-se mais patente aos réprobos que eles estão excluídos de
toda salvação. Entretanto, o fato de Pedro não falar tão distintivamente, não
se deve assim tomar como se, sem qualquer discriminação, esteja ele misturando
os piedosos com os ímpios. Ao contrário, ele quer apenas ensinar que foi comum
a uns e outros o significado da morte de Cristo.
João Calvino