Outros, vendo que este vocábulo é empregado na Escritura com variada acepção,
determinaram duas formas de arrependimento, às quais, para que as distinguissem
com algum traço, a uma chamaram arrependimento legal, pelo qual o pecador,
ferido pelo cautério do pecado e triturado pelo terror da ira de Deus, sente-se como
que enredado nesta inquietação, nem dela consegue desvencilhar; à outra chamaram
arrependimento evangélico, pelo qual o pecador, na verdade, gravemente aflito em si, entretanto se ergue mais alto e recebe a Cristo como o remédio de sua ferida,
o consolo de seu terror, o porto de refúgio de sua miséria.
Do arrependimento legal invocam por exemplos Caim, Saul, Judas, cujo arrependimento,
embora no-lo relate a Escritura, dá ela a saber que, reconhecida a gravidade
de seu pecado, se deixaram dominar-se de pavor da ira de Deus, mas, a Deus
cogitando apenas como Vingador e Juiz, neste sentimento realmente falharam. Portanto,
o arrependimento destes outra coisa não foi senão como que uma antecâmara
do inferno, na qual, havendo já entrado nesta vida, começaram a sofrer os castigos
perante a ira da majestade de Deus.
Vemos o arrependimento evangélico em todos os que, em si espicaçados pelo
aguilhão do pecado, porém soerguidos e refeitos pela confiança na misericórdia de
Deus, voltaram-se para o Senhor. Profundamente aterrado ficou Ezequias ao receber
o anúncio de sua morte; mas, a chorar, orou [2Rs 20.2; Is 38.2], e tendo firmemente
visualizado a bondade de Deus recobrou a confiança. Conturbados foram os
ninivitas pela horrível ameaça de destruição; mas, vestidos de saco e cinza, oraram,
esperando que o Senhor pudesse demover-se e ser desviado do furor de sua ira [Jn
3.5, 9]. Davi confessou que havia pecado sobremaneira, recenseando o povo, porém
acrescentou: “Remove, Senhor, a iniqüidade de teu servo” [2Sm 24.10]. Repreendendo-o
Natã, ele reconheceu o crime de adultério e se prostrou diante do Senhor;
mas, ao mesmo tempo, esperou seu perdão [2Sm 12.13, 16]. Tal foi o arrependimento
dos que sentiram a compunção de seu coração ante a pregação de Pedro, contudo,
confiados na bondade de Deus, acrescentaram: “Que faremos, irmãos?” [At 2.37].
Tal foi também o arrependimento do próprio Pedro, que chorou real e amargamente,
entretanto não cessou de esperar [Mt 26.75; Lc 22.62].
João Calvino