E, por esta razão, Paulo diz que esse amor com que
Deus nos abraçou “antes da criação do mundo” [Ef 1.4] fora estabelecido e
fundamentado em Cristo. Estas coisas são evidentes e em estrita concordância
com a Escritura e harmonizam excelentemente entre si essas passagens onde se
diz que nisto Deus manifestou seu amor para conosco: que o Filho Unigênito foi
entregue à morte [Jo 3.16], e todavia fora inimigo antes que, pela morte de
Cristo, se nos tornasse favorável [Rm 5.10]. Mas, para que estas coisas sejam
mais firmes entre aqueles que requerem o testemunho da Igreja antiga, citarei
uma passagem de Agostinho,262 onde isto mesmo se ensina: “Incompreensível”, diz
ele, “e imutável é o amor de Deus. Pois ele começou a amarnos, não desde que
fomos reconciliados com ele pelo sangue de seu Filho; pelo contrário, ele nos
amou antes da formação do mundo, para que também nós lhe fôssemos filhos
juntamente com seu Unigênito, mesmo antes que viéssemos a ser algo. Que,
portanto, fomos reconciliados pela morte de Cristo, não se deve entender como
se o Filho nos reconciliasse com o Pai para que este começasse a nos amar,
porque antes nos odiava; mas foi reconciliado com quem já antes nos amava,
ainda que, pelo pecado, nutria inimizade para conosco. O Apóstolo é testemunha
de que afirma a verdade: ‘Deus prova seu amor para conosco em que, enquanto
éramos ainda pecadores, Cristo morreu por nós’ [Rm 5.8]. Tinha ele, portanto,
amor para conosco ainda quando, exercendo inimizades para com ele, praticávamos
a iniqüidade. E assim, de modo maravilhoso e divino, ainda quando nos odiava,
ele nos amava. Pois ele nos odiava enquanto éramos como ele nos fizera.264 E
porque nossa iniqüidade não havia consumido de todo sua obra em nós, sabia, a
um só tempo, em cada um de nós, não só odiava o que fazíamos, mas também amava
o que ele havia feito.” É isso o que diz Agostinho.
João Calvino