DUAS PESSOAS EM CRISTO, PORÉM UMA SÓ PESSOA
Com efeito, no que se diz ter-se o Verbo feito carne
[Jo 1.14], não se deve com isso entender como se ele ou se convertesse em
carne, ou confusamente se misturasse à carne; ao contrario, visto que do ventre
da Virgem para si escolheu um templo em que habitasse, e Aquele que era o Filho
de Deus se fez o Filho do Homem, não mediante confusão de substância, mas em
virtude de unidade de pessoa. Pois, na verdade, afirmamos que a Divindade foi
tão associada e unida à humanidade, que sua propriedade permaneceu integral a
cada natureza, e todavia dessas duas é constituído um único Cristo. Se nas
coisas humanas se pode achar algo como símile a tão grande mistério, a
similitude do homem parece a mais apropriada, o qual vemos consistir de duas
substâncias, das quais, entretanto, nenhuma se misturou de tal forma à outra
que não retenha a propriedade de sua natureza. Pois, a alma não é corpo, nem o
corpo, alma. Porquanto, não só da alma se diz especificamente o que, de modo
algum, pode caber ao corpo; mas, por outro lado, também do corpo o que, por
nenhuma razão, convenha à alma; igualmente do homem, em sua totalidade, se
atribuem coisas que não podem ser atribuídas a nenhuma das partes em si mesmas
consideradas. Finalmente, transferem-se ao corpo propriedades características
da alma, e à alma propriedades características do corpo. Entretanto, aquele que
consta destes elementos é um homem só, não muitos. E assim, formas de expressão
deste quilate significam não só que há no homem uma só pessoa composta de dois
elementos conjugados, mas ainda que nele subsistem duas naturezas diversas, que
constituem esta pessoa. Assim também falam as Escrituras a respeito de Cristo:
atribuem-lhe, às vezes, coisas que importa sejam atribuídas especificamente à
sua humanidade; às vezes, coisas que competem exclusivamente à sua divindade;
de quando em quando, coisas que abrangem a uma e outra natureza, mas que não
são bastante próprias de nenhuma das duas separadamente. E, na verdade, com tão
grande fervor exprimem esta conjunção de uma dupla natureza que subsiste em
Cristo, que algumas vezes as fazem comunicar-se entre si, tropo este que pelos
antigos foi chamado ivdiwma,twn koinwni,a – comunhão de propriedades peculiares].
João Calvino