Indagar, entretanto, se o próprio Cristo adquiriu mérito
para si mesmo, o que fazem Lombardo e os escolásticos, é não menos curiosidade
estulta do que temerária delimitação, quando isso mesmo asseveram. Pois, que
necessidade houve de que o Filho único de Deus descesse a fim de adquirir para
si não sei o que de novo? E expondo seu desígnio, Deus dirime toda dúvida. Ora,
o Pai não diz ter granjeado provento para o Filho nos méritos deste; ao
contrário, que o entregou à morte, não o poupou [Rm 8.32], porque amava o mundo
[Jo 3.16]. E devem-se notar as elocuções proféticas: “Um menino nos nasceu” [Is
9.6]; igualmente: “Exulta, ó filha de Sião; eis a ti vem teu Rei” [Zc 9.9].
Feneceria também, de outra sorte, aquela confirmação de seu amor que Paulo
enaltece: que Cristo sofreu a morte em favor dos próprios inimigos [Rm 5.10].
Pois daí concluímos que ele não teve motivo próprio, e isso ele afirma
claramente, dizendo: “Por eles me santifico a mim mesmo” [Jo 17.19]. Ora,
comprova que nada adquiriu para si ao transferir para outros o fruto de sua
santidade. E isto, certamente, é especialmente digno de nota: Cristo, para que
devotasse a todos nós à salvação, de si mesmo se esqueceu. o exaltou e lhe deu o
nome” etc. [Fp 2.9]. Ora, por que méritos pôde ele como homem conseguir que
fosse Juiz do mundo, Cabeça dos anjos, e que obtivesse a suprema autoridade de
Deus, e nele residisse essa majestade de que todos os poderes dos homens e dos
anjos não podem atingir sequer a milésima parte? Mas, a solução é fácil e
plena: Paulo não está aí discorrendo acerca da causa da exaltação de Cristo,
mas apenas lhe mostrando a conseqüência, para que nos fosse por exemplo.
Evidentemente, não quis dizer aqui mais do que afirma em outro lugar, a saber:
“que era necessário que Cristo padecesse e assim entrasse na glória do Pai” [Lc
24.26].
João Calvino