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quarta-feira, 15 de agosto de 2018

NATUREZA E EXTENSÃO DO OFÍCIO REAL DE CRISTO


Portanto, sua unção régia não nos é proposta como sendo feita de óleo ou de ungüentos aromáticos; pelo contrário, ele é chamado “o Cristo de Deus” [Lc 9.20] porque sobre ele “repousou o Espírito de sabedoria, entendimento, conselho, fortitude e temor de Deus [Is 11.2]. Este é “o óleo de alegria” com que o Salmo [45.7] proclama ter sido ele “ungido acima de seus companheiros”, porquanto, a não ser que nele houvesse tal excelência, pobres seríamos todos e famélicos. Pois, como foi dito, tampouco se fez ele rico particularmente para si próprio, mas para que derramasse de sua abundância sobre os famintos e os sedentos. Ora, assim como se diz que “o Pai não deu ao Filho o Espírito por medida” [Jo 3.34], assim expressa ele a razão: “para que dele todos nós recebêssemos de sua plenitude, e graça sobre graça” [Jo 1.16]. Desta fonte emana a munificência que Paulo rememora, em virtude da qual “a graça é variadamente distribuída aos fiéis, conforme a medida da liberalidade de Cristo” [Ef 4.7]. Com estas considerações confirma-se, sobejamente, o que tenho dito: que o reino de Cristo se situa no Espírito, não em gozos ou pompas terrenas; e daí, para que sejamos seus participantes, temos que renunciar ao mundo. O símbolo visível desta sacra unção foi manifestado no batismo de Cristo, quando sobre ele repousou o Espírito na forma de uma pomba [Lc 3.22; Jo 1.32]. Com efeito, que o Espírito e seus dons são designados pelo termo unção [1Jo 2.20, 27], não deve parecer ser algo novo, nem absurdo, porquanto não somos alentados de outra parte. Especialmente, porém, no que tange à vida celestial, nenhuma gota de vigor há em nós a não ser a que o Espírito Santo nos instila, o qual escolheu em Cristo sua sede, para que daí nos jorrassem sobejamente as riquezas celestes, das quais somos demasiadamente carentes. Entretanto, visto que os fiéis se saem não só invictos pelo poder de seu Rei, mas também suas riquezas espirituais neles exuberam, não é sem razão que se dizem cristãos. Ademais, a esta eternidade de que temos falado nada altera a afirmação de Paulo: “Então entregará ele o reino ao Deus e Pai” [1Co 15.24]. Igualmente: “O próprio Filho se lhe sujeitará, para que Deus seja tudo em todas as coisas” [1Co 15.28], daí outra coisa não quer ele dizer senão que naquela glória perfeita tal administração do reino não haverá de ser qual é agora. Ora, o Pai deu todo o poder ao Filho, para que, por sua mão, nos governe, nutra, sustente; sob seu cuidado nos proteja e nos auxilie. E assim, por todo tempo em que peregrinarmos distanciados de Deus, no meio se interpõe Cristo para que, a pouco e pouco, nos conduza plenamente à sólida união com Deus. Assentar-se à destra do Pai equivale, na verdade, dizer que ele é o legado do Pai, em quem reside todo o poder do governo,257 visto que Deus quer reger e proteger a Igreja, por assim dizer, mediatamente, em sua pessoa. Como, aliás, Paulo interpreta, no primeiro capítulo da Epístola aos Efésios: Cristo foi posto à destra do Pai para que seja o Cabeça da Igreja, que é seu corpo [Ef 1.20-23]. À mesma conclusão se chega o que ensina em outro lugar [Fp 2.9-11], a saber: lhe foi dado um nome que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho e toda língua o confesse para a glória de Deus Pai. Ora, com estas palavras ele está recomendando também a ordem imperante no reino de Cristo, necessária à nossa presente insuficiência. Por isso Paulo conclui corretamente que Deus haverá, então, de ser pessoalmente o Cabeça único da Igreja, porque as funções de Cristo na defesa da Igreja já estarão cumpridas. Pela mesma razão, a cada passo, a Escritura o chama Senhor, porque com esta prerrogativa o Pai o colocou sobre nós, para que exerça seu governo através dele. Porque, ainda que se celebrem muitos senhorios no mundo, “para nós há um só Deus, o Pai, de quem procedem todas as coisas, e nós nele; e um só Senhor, Cristo, mediante quem são todas as coisas, e nós através dele”, diz Paulo [1Co 8.6]. Do que se conclui, devidamente, que ele é o próprio Deus que afirmou, pela boca de Isaías [33.22], ser o Rei e Legislador da Igreja. Porque, ainda que Cristo declare em muitos lugares que toda a autoridade e o poder que possi é benefício e mercê do Pai, com isso outra coisa não quer dizer senão que reina com majestade e virtude divinas; pois adotou precisamente a pessoa do Mediador para que, descendo do seio do Pai e de sua glória incompreensível, se aproxime de nós.258 Pelo que, mais justo é que todos nós, com um só sentimento, nos aprestemos para obedecer, e com a máxima prontidão a seu arbítrio conformemos nossa obediência. Pois assim como conjuga os ofícios de Rei e Pastor em relação aos piedosos, os quais, de vontade própria, se lhe sujeitem com mansidão, assim também, por outro lado, ouvimos que ele porta um cetro de ferro, com o qual quebre e despedace a todos os renitentes, como se fossem vasos de oleiro” [Sl 2.9]. Ouvimos também que “ele haverá de ser juiz dos povos, de sorte que cubra a terra de cadáveres e lance por terra tudo quanto se eleve acima dele” [Sl 110.6]. Hoje se vêem certos exemplos deste fato, mas a plena evidência se deparará no Juízo Final, que, aliás, se pode, com propriedade, considerar o ato derradeiro de seu reino.

João Calvino