Portanto, sua unção régia não nos é proposta como
sendo feita de óleo ou de ungüentos aromáticos; pelo contrário, ele é chamado
“o Cristo de Deus” [Lc 9.20] porque sobre ele “repousou o Espírito de sabedoria,
entendimento, conselho, fortitude e temor de Deus [Is 11.2]. Este é “o óleo de
alegria” com que o Salmo [45.7] proclama ter sido ele “ungido acima de seus
companheiros”, porquanto, a não ser que nele houvesse tal excelência, pobres
seríamos todos e famélicos. Pois, como foi dito, tampouco se fez ele rico
particularmente para si próprio, mas para que derramasse de sua abundância
sobre os famintos e os sedentos. Ora, assim como se diz que “o Pai não deu ao
Filho o Espírito por medida” [Jo 3.34], assim expressa ele a razão: “para que
dele todos nós recebêssemos de sua plenitude, e graça sobre graça” [Jo 1.16].
Desta fonte emana a munificência que Paulo rememora, em virtude da qual “a
graça é variadamente distribuída aos fiéis, conforme a medida da liberalidade
de Cristo” [Ef 4.7]. Com estas considerações confirma-se, sobejamente, o que
tenho dito: que o reino de Cristo se situa no Espírito, não em gozos ou pompas
terrenas; e daí, para que sejamos seus participantes, temos que renunciar ao
mundo. O símbolo visível desta sacra unção foi manifestado no batismo de
Cristo, quando sobre ele repousou o Espírito na forma de uma pomba [Lc 3.22; Jo
1.32]. Com efeito, que o Espírito e seus dons são designados pelo termo unção
[1Jo 2.20, 27], não deve parecer ser algo novo, nem absurdo, porquanto não
somos alentados de outra parte. Especialmente, porém, no que tange à vida
celestial, nenhuma gota de vigor há em nós a não ser a que o Espírito Santo nos
instila, o qual escolheu em Cristo sua sede, para que daí nos jorrassem
sobejamente as riquezas celestes, das quais somos demasiadamente carentes.
Entretanto, visto que os fiéis se saem não só invictos pelo poder de seu Rei,
mas também suas riquezas espirituais neles exuberam, não é sem razão que se
dizem cristãos. Ademais, a esta eternidade de que temos falado nada altera a
afirmação de Paulo: “Então entregará ele o reino ao Deus e Pai” [1Co 15.24].
Igualmente: “O próprio Filho se lhe sujeitará, para que Deus seja tudo em todas
as coisas” [1Co 15.28], daí outra coisa não quer ele dizer senão que naquela
glória perfeita tal administração do reino não haverá de ser qual é agora. Ora,
o Pai deu todo o poder ao Filho, para que, por sua mão, nos governe, nutra,
sustente; sob seu cuidado nos proteja e nos auxilie. E assim, por todo tempo em
que peregrinarmos distanciados de Deus, no meio se interpõe Cristo para que, a
pouco e pouco, nos conduza plenamente à sólida união com Deus. Assentar-se à
destra do Pai equivale, na verdade, dizer que ele é o legado do Pai, em quem
reside todo o poder do governo,257 visto que Deus quer reger e proteger a
Igreja, por assim dizer, mediatamente, em sua pessoa. Como, aliás, Paulo
interpreta, no primeiro capítulo da Epístola aos Efésios: Cristo foi posto à
destra do Pai para que seja o Cabeça da Igreja, que é seu corpo [Ef 1.20-23]. À
mesma conclusão se chega
o que ensina em outro lugar [Fp 2.9-11], a saber: lhe foi dado um nome que está
acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho e toda
língua o confesse para a glória de Deus Pai. Ora, com estas palavras ele está
recomendando também a ordem imperante no reino de Cristo, necessária à nossa
presente insuficiência. Por isso Paulo conclui corretamente que Deus haverá,
então, de ser pessoalmente o Cabeça único da Igreja, porque as funções de
Cristo na defesa da Igreja já estarão cumpridas. Pela mesma razão, a cada
passo, a Escritura o chama Senhor, porque com esta prerrogativa o Pai o colocou
sobre nós, para que exerça seu governo através dele. Porque, ainda que se
celebrem muitos senhorios no mundo, “para nós há um só Deus, o Pai, de quem
procedem todas as coisas, e nós nele; e um só Senhor, Cristo, mediante quem são
todas as coisas, e nós através dele”, diz Paulo [1Co 8.6]. Do que se conclui,
devidamente, que ele é o próprio Deus que afirmou, pela boca de Isaías [33.22],
ser o Rei e Legislador da Igreja. Porque, ainda que Cristo declare em muitos
lugares que toda a autoridade e o poder que possi é benefício e mercê do Pai,
com isso outra coisa não quer dizer senão que reina com majestade e virtude
divinas; pois adotou precisamente a pessoa do Mediador para que, descendo do
seio do Pai e de sua glória incompreensível, se aproxime de nós.258 Pelo que,
mais justo é que todos nós, com um só sentimento, nos aprestemos para obedecer,
e com a máxima prontidão a seu arbítrio conformemos nossa obediência. Pois
assim como conjuga os ofícios de Rei e Pastor em relação aos piedosos, os
quais, de vontade própria, se lhe sujeitem com mansidão, assim também, por
outro lado, ouvimos que ele porta um cetro de ferro, com o qual quebre e
despedace a todos os renitentes, como se fossem vasos de oleiro” [Sl 2.9].
Ouvimos também que “ele haverá de ser juiz dos povos, de sorte que cubra a
terra de cadáveres e lance por terra tudo quanto se eleve acima dele” [Sl
110.6]. Hoje se vêem certos exemplos deste fato, mas a plena evidência se
deparará no Juízo Final, que, aliás, se pode, com propriedade, considerar o ato
derradeiro de seu reino.
João Calvino