Passo agora a tratar do reino, acerca do qual faríamos
considerações vãs,252 a não ser que os leitores sejam antes advertidos de que
sua natureza é espiritual, porquanto daí poderão compreender sua utilidade e o
proveito que lhes toque,253 e toda sua força e eternidade. Com efeito, a
eternidade que em Daniel [2.44] o Anjo atribui à pessoa de Cristo, com razão,
em Lucas [1.33], o mesmo Anjo a acomoda à salvação do povo. Mas esta eternidade
é também dúplice, ou deve ser estatuída sob dois pontos de vista, pois uma diz
respeito a todo o corpo da Igreja, a outra é própria de cada um de seus
membros. À primeira deve atribuir-se o que se diz no Salmo [89.35-37]: “Uma vez
a Davi jurei por minha santidade, não mentirei; sua semente permanecerá para
sempre; seu trono será como o sol à minha vista, como a lua será firmado para
sempre, e fiel testemunha será no céu.” Pois não há dúvida de que aí Deus está
prometendo que, pela mão de seu Filho, haverá de ser o eterno mentor e protetor
da Igreja. Ora, não em outra parte, senão que em Cristo, se achará a verdade
deste vaticínio, pois, imediatamente após a morte de Salomão, a dignidade do
reino foi, em sua maior porção, posta por terra, e com a ignomínia da família
davídica foi transferida a um homem estranho. Mais tarde foi ela pouco a pouco
diminuída, até que, por fim, decaísse de todo em uma triste e vergonhosa ruína.
O mesmo sentido tem essa exclamação de Isaías: “Sua geração, quem a narrará!”
[Is 53.8]. Pois está a proclamar que Cristo assim haverá de sobreviver à morte
que o liga com seus membros. Portanto, quantas vezes ouvimos ser Cristo armado
de eterno poder, lembremonos de que com esta proteção se sustém a perpetuidade
da Igreja, de sorte que per maneça, no entanto, incólume por entre agitações
turbulentas de que é constantemente assediada; por entre graves e formidáveis
comoções, que inúmeras calamidades lhe ameaçam. Assim, onde Davi se ri da
audácia dos inimigos, que tentam alijar o jugo de Deus e de seu Cristo, e diz
que “em vão tumultuam reis e povos, porquanto Aquele que habita nos céus é
suficientemente forte para aparar-lhes as investidas” [Sl 2.24], tornando os
piedosos mais seguros da perpétua conservação da Igreja, os anima a esperar
confiantes sempre que ocorre ser ela oprimida.254 Assim, em outro lugar, quando
fala na pessoa de Deus: “Assenta-te à minha destra, até que eu ponha teus
inimigos por escabelo de teus pés” [Sl 110.1], está afirmando que, por mais que
muitos e poderosos inimigos conspirem para destruir a Igreja, entretanto não
lhes assistem forças em virtude das quais prevaleçam contra esse imutável
decreto de Deus, pelo qual constituiu a seu Filho Rei eterno. Donde se segue
que não pode acontecer que, com todo o aparato do mundo, o Diabo venha a
destruir a Igreja que está fundamentada no eterno trono de Cristo. Ora, no que
respeita à aplicação especial a cada um de nós, essa mesma eternidade nos deve
elevar à esperança da bem-aventurada imortalidade. Pois tudo quanto é terreno,
e do mundo, percebemos ser temporal, até mesmo efêmero. Portanto, para que
nossa esperança seja elevada aos céus, Cristo declara que seu reino não é do
mundo [Jo 18.36]. Enfim, quando alguém dentre nós ouve que o reino de Cristo é
espiritual, animado por esta afirmação, transporte-se à esperança de uma vida
melhor; e já que agora se acha protegido pela mão de Cristo, espere a plena
frutificação desta graça no mundo vindouro.
João Calvino