Além disso, importa ter-se em conta o significado ambíguo do termo, pois freqüentemente
fé equivale à sã doutrina da piedade, como nesta passagem que citamos
há pouco e na mesma Epístola onde Paulo quer que os diáconos mantenham “o
mistério da fé em uma consciência pura” [1Tm 3.9]. De igual modo, ondedenuncia
a apostasia de alguns[1Tm 4.1]. Mas, por outro lado, diz que Timóteo havia sido
“alimentado com as palavras da fé” [1Tm 4.6]. Também, onde diz que “os clamores fúteis e profanos, e às oposições da falsamente chamada ciência”, são a causa por
que muitos se desviem da fé [1Tm 6.20, 21], aos quais em outro lugar chama réprobos
quanto à fé [2Tm 3.8]. Assim, de novo, onde preceitua a Tito: “Admoesta-os a
que sejam sãos na fé” [Tt 1.13], querendo significar com este termo sanidade simplesmente
a pureza da doutrina que facilmente se corrompe e degenera pela volubilidade
dos homens. Isto é, “Em quem estão escondidos todos os tesouros da sabedoria
e da ciência” [Cl 2.3], a quem se possui pela fé, com razão este termo fé se
estende à suma de toda a doutrina celestial da qual ela não pode separar-se.
Em contraposição, por vezes o termo fé se restringe a algum objeto particular
como quando diz Mateus [9.2] que Cristo viu fé naqueles que fizeram descer o
paralítico por entre as telhas, e ele próprio exclama que não achara tão grande fé em
Israel, como a demonstrada pelo centurião [Mt 8.10]. Com efeito, é provável que
estivera ele inteiramente voltado para a cura do filho, cujo cuidado ocupara toda sua
mente, mas, porque se contenta só com a resposta de Cristo, não exige sua presença
corporal; por causa desta circunstância sua fé é tão sublimemente louvada.
E, pouco antes, ensinamos que Paulo toma o termo fé para designar o dom de
milagres [1Co 13.2], dom que possuem até os que nem foram regenerados pelo
Espírito de Deus, nem seriamente o cultuam. Em outro lugar, também usa o termo fé
como designando a doutrina pela qual somos instruídos na fé. Ora, quando escreve
que a fé haverá de cessar [1Co 13.10], não há dúvida de que isso se refere ao ministério
da Igreja, que é hoje valioso à nossa fraqueza.
Nestas formas de expressão certamente evidencia-se uma analogia. Quando,
porém, impropriamente se transfere o termo fé a uma falsa profissão ou a um título
fictício, ele não deve parecer mais duro e estranho a kata,crhsij [katáchr@sis – uso
inapropriado] do que onde a expressão se aplica ao temor de Deus como designativo
de um culto vicioso e pervertido, como quando freqüentemente se diz na História
Sagrada que os povos estrangeiros que tinham sido trasladados a Samaria e lugares
vizinhos tinham temido os deuses fictícios e o Deus de Israel [2Rs 17.24-41], o que
vale tanto quanto misturar o céu à terra.
Mas, agora indagamos em que consiste a fé que distingue os incrédulos dos
filhos de Deus, pela qual invocamos a Deus por Pai, pela qual passamos da morte
para a vida e pela qual Cristo, nossa eterna salvação e nossa vida, habita em nós. A
esse respeito, parece-me que expus breve e claramente sua natureza e propriedade.
João Calvino