Aqui, na verdade, certos embusteiros, indoutos,
contudo impulsionados por maldade mais do que por ignorância, bradam que estou
fazendo atroz injustiça a Cristo, visto que teria sido mui longe de congruente
que ele temesse quanto à salvação de sua alma. Em seguida, mais acerbamente,
agitam a cavilação de que atribuo ao Filho de Deus desespero que é contrário à
fé. Perversamente, esses biltres suscitam controvérsia, em primeiro plano,
quanto ao medo e pavor de Cristo, que os evangelistas proclamam tão
ostensivamente. Ora, antes que lhe chegasse o momento da morte, ele “foi
conturbado em espírito” [Jo 13.21] e tomado de angústia; no próprio encontro
com a morte, de fato começou a apavorar-se ainda mais intensamente. Se dizem
que foi simples simulação, essa é uma evasiva assaz nauseabunda.
Confiantemente, portanto, como corretamente ensina Ambrósio, a não ser que nos
envergonhemos da cruz, importa-nos confessar a consternação de Cristo. E, na
verdade, a menos que também sua alma fosse participante do castigo, teria
Cristo sido Redentor apenas dos corpos. Mas, era-lhe indispensável lutar para
que reerguesse os que jaziam prostrados. E daí dele não se detrai absolutamente
nada à celeste glória que, neste aspecto, resplandece sua bondade, nunca é
suficientemente louvada: que não lhe pareceu ser árduo tomar sobre si nossas
mazelas. Donde também esse consolo de ansiedades e aflições que o Apóstolo nos
propõe: que este Mediador sofreu nossas mazelas para que viesse a ser mais
predisposto a socorrernos a nós míseros sofredores [Hb 4.15]. Insistemque
indignamente se atribui a Cristo o que é por si só poluível. Como se, na
verdade, mais sabedoria tivessem esses que o Espírito de Deus, que concilia, a
um tempo, estas duas coisas: que Cristo em tudo foi tentado como nós o somos, e
contudo sem pecado [Hb 4.15]. Não há, portanto, por que nos espante a fraqueza
de Cristo, para que se sujeitasse à mesma não foi coagido por violência ou
necessidade; ao contrário, foi induzido por puro amor a nós e por sua
misericórdia. Tudo quanto, porém, de livre vontade sofreu por nós nada lhe
denigre o poder. Mas, em um ponto esses detratores se enganam, a saber, que não
reconhecem em Cristo uma fraqueza pura e isenta de toda mancha e estigma, já
que ele se conteve dentro dos limites da obediência. Ora, visto que na
depravação de nossa natureza, na qual, por turbulento impulso, todas as emoções
excedem a medida, não se pode ver moderação, com esta medidamedem erradamente o
Filho de Deus. Como, porém, ele fosse impoluto, em todas as suas emoções
vigorou moderação que lhes coibisse o excesso. Donde nos pôde ele ser
semelhante no sofrimento, no medo e no temor, contudo nesse particular ele
diferiu de nós. Refutados neste ponto, por fim saltam para outra sutileza:
embora Cristo tenha temido a morte, não temeu a maldição e ira de Deus, da qual
bem sabia estar seguro. Rogo, porém, aos leitores piedosos que ponderem quão
dignificante isto é para Cristo, a saber, ter ele sido mais tímido e mais
timorato que a esmagadora maioria do comum dos homens! Atrevidamente, os
assaltantes e malfeitores costumam atirarse à morte sofregamente; muitos a
desprezam de ânimo altivo; outros a enfrentam tranqüilamente. Que firmeza ou
que grandeza teria sido que o Filho de Deus tenha sido fortemente abalado e
quase aturdido pelo horror da morte? Ora, a respeito dele refere-se o que se
poderia, comumente, considerar prodigioso: ante a intensidade da agonia, gotas
de sangue lhe porejaram da face [Lc 22.44]. Nem, realmente, ofereceu ele este
espetáculo aos olhos de outros, uma vez que dirigiu seus gemidos ao Pai em um
recanto isolado. A dúvida é removida pelo fato de que se fez necessário que do
céu descessem anjos que o assistissem com inusitado conforto [Lc 23.43]. Quão
vergonhoso teria sido, como eu disse, este desfibramento, que se vergasse ele
ante o temor da morte comum até este ponto: que se banhasse de suor de sangue,
nem se pudesse refazer senão pela presença de anjos? Ponderemos bem sobre essa
deprecação três vezes repetida, a proceder de incrível amargura de espírito:
“Pai, se é possível, passe de mim este cálice” [Mt 26.39], não mostra,
porventura, ser mais áspero e mais árduo o embate que Cristo enfrentou que um que
proceda de morte comum? De que se evidencia que estes trapalhões com quem estou
a disputar vociferam ousadamente acerca de coisas que lhes são ignoradas,
porquanto jamais ponderaram seriamente o que signifique sermos nós redimidos do
juízo de Deus. Com efeito, aqui está nossa sabedoria: sentir devidamente quanto
nossa salvação custou ao Filho de Deus. Ora, se alguém pergunta se porventura
então Cristo desceu às regiões infernais quando assim implorou a morte,
respondo que este foi o começo. Donde se pode inferir quão cruéis e horríveis
tormentos tenha ele sofrido quando se reconhecia estar diante do tribunal de
Deus como réu, por nossa causa. Mas, embora nele o divino poder do Espírito se
ocultasse por um momento, de sorte que desse lugar à fraqueza da carne,
deve-se, não obstante, reconhecer que a tentação procedente da sensação de dor
e de medo foi tal que não conflitasse com a fé. E desta maneira se cumpriu o
que se encontra no discurso de Pedro: “que não foi possível fosse ele retido
pelas dores da morte” [At 2.24], porquanto, sentindo-se como que abandonado por
Deus, não se afastou, na verdade, um mínimo sequer da confiança de sua bondade.
Isto ensina aquela celebrada invocação em que, ante a premência da dor, clamou:
“Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” [Mt 27.46]. Ora, ainda que seja
tomado de desmedida agonia não deixa, entretanto, de chamar Deus meu Àquele de
quem exclama estar desamparado. Com efeito, assim fica refutado tanto o erro de
Apolinário, quanto o erro daqueles que foram chamados monotelitas. Aquele
imaginava que Cristo teve o Espírito eterno em lugar da alma, de sorte que
seria homem apenas pela metade. Como se, na verdade, tivesse ele podido expiar
nossos pecados, a não ser pela obediência ao Pai! Mas, onde está a disposição
ou vontade de obediência, senão na alma, a qual sabemos que nele foi perturbada
para que, dissipado o temor, alcancem nossas almas paz e descanso? Ademais,
contra os monotelitas vemos que, agora como homem, ele não quis o que queria
segundo a natureza divina. Deixo de parte que ele, mediante sentimento
contrário, se sobreponha ao temor de que temos falado, pois não é obscura essa
aparência de contradição: “Pai, livra-me desta hora. Mas, eu vim justamente
para esta hora. Pai, glorifica teu nome” [Jo 12.27, 28]. Nesta perplexidade,
contudo, nenhum descomedimento houve, o qual se vê em nós ainda quando nos
esforçamos ao máximo para dominar-nos.
João Calvino