Ora, na benevolência divina, à qual dizemos que a fé contempla, entendemos
que se obtém a posse da salvação e da vida eterna. Ora, se não pode faltar-nos bem
algum quando Deus nos acolhe sob sua proteção, é suficiente segurança de nossa
salvação que ele nos testifique o amor que nos tem. “Mostre ele sua face”, diz o
Profeta, “e seremossalvos” [Sl 80.3, 7, 19]. Do quê as Escrituras formulam esta
síntese de nossa salvação: que, uma vez abolidas todas as inimizades, ele nos recebeu
em sua graça [Ef 2.14, 15]. Com isto dão evidentemente a entender que, uma
vez que Deus esteja reconciliado conosco, não resta o menor perigo de que todas as
coisas não nos sucedam bem. Portanto, a fé, apreendendo o amor de Deus, tem as
promessas da vida presente e da vida futura [1Tm 4.8], bem como a firme certeza de
todas as coisas boas, a qual, porém, pode ser depreendida da Palavra.
Ora, por certo a fé não promete longevidade, nem honra, nem riquezas nesta
presente vida, uma vez que nada destas coisas quis o Senhor nos fosse destinado;
pelo contrário, vivemos contentes com esta certeza: por mais que nos faltem muitas
coisas que dizem respeito ao sustento desta vida, Deus, no entanto, jamais nos haverá
de faltar. Mas, sua primordial certeza reside na expectação da vida futura que,
pela Palavra de Deus, foi posta além de toda dúvida. Entretanto, quaisquer que
sejam na terra as misérias e calamidades que esperem aqueles a quem Deus já abraçou
com seu amor, não podem impedir que sua benevolência lhes seja a plena felicidade.
Daí, quando queríamos exprimir a suma da bem-aventurança, mencionamos a graça de Deus, de cuja fonte nos emanam todas as espécies de bênçãos. E isto, a
cada passo, se pode observar nas Escrituras: que somos encaminhados ao amor do
Senhor que, vezes sem conta, trata não só da salvação eterna, mas até de qualquer
outro bem nosso. Razão por queDavi canta: a bondade divina, quando é sentida no
coração piedoso, é mais doce e mais desejável do que a própria vida [Sl 63.3].
Enfim, se tivéssemos tudo,segundo nosso desejo, mas vivêssemos incertos quanto
ao amor ou ao ódio de Deus, nossa felicidade seria maldita, e por isso desditosa.
Mas se Deus nos mostra seu rosto de Pai, até as próprias misérias nos serão para
felicidade, pois se converterão em auxílio para a salvação.
Assim é que Paulo, enfeixando todas as coisas adversas, entretanto se gloria de
que não somos por elas separado do amor de Cristo [Rm 8.34-39], e em suas preces
sempre parte da graça de Deus, da qual emana toda prosperidade. De maneira semelhante,
Davi contrapõe o favor de Deus a todos os temores que nos conturbam. “Se
porventura eu andar em meio à sombra da morte, não temerei males, porque tu estás
comigo” [Sl 23.4]. E sentimos sempre vacilar-nos o espírito, a não ser que, contentes
com a graça de Deus, nela busquemos sua paz, profundamente arraigados no que
lemos no Salmo: “Feliz é o povo cujo Deus é o Senhor, e a nação a quem ele elegeu
por sua herança” [Sl 33.12].
João Calvino