Além disso, ainda que a fé seja o conhecimento da divina benevolência para
conosco e a segura convicção de sua verdade, contudo não é de admirar que nos
chamados justos, temporariamente, se desvaneça o senso do amor divino, o qual,
embora seja afim à fé, entretanto diferemuito dela. Declaro que a vontade de Deus
é imutável e sua verdade é sempre consistente com a mesma. Contudo nego que os
réprobos avancem até o ponto de penetrar essa secreta revelação que a Escritura
reivindica só para os eleitos. Nego, porém, que eles ou apreendam a vontade de
Deus, como é imutável, ou com real constância lhe abracem a verdade; por isso é
que se detêm em um sentimento evanescente, como uma árvore, plantada não bastante
funda para produzirraízes vivas, seca-se no decurso do tempo, ainda que por
alguns anos simule não só flores e folhas, mas até mesmo frutos.
Enfim, assim como pela quedado primeiro homem pôde-se apagar de sua mente
e de sua alma a imagem de Deus, assim também não é de admirarse a alguns réprobos
Deus ilumine com os raios de sua graça, os quais, mais tarde, permite que se
extingam. Tampouco coisa alguma impede que Deus a uns tinja levemente de conhecimento
de seu evangelho, a outros infunda profundamente. Isto, contudo, devese
manter: por mais exígua e débil que a fé seja nos eleitos, entretanto, uma vez que
o Espírito de Deuslhes é o seguro penhor e selo de sua adoção [Ef 1.14], jamais se
pode apagar de seus corações o que ele neles gravou. Quanto à iluminação dos
réprobos, finalmente se dissipa e perece, sem que possamos dizer por isso que o
Espírito engana a alguém, pelo fato de que não vivifica a semente que jaz em seu
coração, de sorte que permaneça sempre incorruptível como nos eleitos.
Portanto, vou mais longe: uma vez que do ensino da Escritura e da experiência
diária se faça patente que os réprobos são, por vezes, tocados pelo senso da graça
divina, necessariamente se lhes desperta no coração certo desejo de amor mútuo.
Assim, por certo tempo vicejou em Saul um afeto piedoso para que amasse a Deus,
de quem, reconhecendo ser tratado paternalmente, era tomado de algum dulçor de
sua bondade. Mas, uma vez que nos réprobos não se arraiga profundamente a convicção
do paterno amor de Deus, não o amam plenamente como filhos; pelo contrário,
são conduzidos por certa disposição mercenária. Ora, só a Cristo foi dado esse
Espírito de amor, com esta condição: que o instile em seus membros; na verdade
esta afirmação de Paulo não se estende para além dos eleitos: “Porquanto o amor de
Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” [Rm
5.5]; isto é, esse amor que gera aquela confiança de invocação que abordei acima
[Gl 4.6].
Assim vemos, por outro lado, que Deus se ira paradoxalmente com seus filhos a
quem não deixa de amar; não que em si os deteste, mas porque os quer aturdir com o senso de sua ira, para que lhes humilhe a soberba da carne, sacuda-lhes o torpor e
os provoque ao arrependimento. E assim concebem-no ao mesmo tempo não só
irado contra eles, ou contra seus pecados, mas também propício para com eles; pois
eles não fingidamente suplicam que lhes seja desviada sua ira, enquanto nele se
refugiam com serena confiança. Com estas considerações, de fato fica evidente que
alguns não estão a simular fé, os quais, no entanto, carecem da verdadeira fé. Ao
contrário, enquanto são levados de súbito impulso de zelo, enganam-se a si próprios
com uma opinião falsa. Nem há dúvida de que deles se assenhoreie a displicência,
de sorte que não examinam devidamente o próprio coração, como seria de esperar.
É provável que tais tenham sido aqueles em quem, conforme o testifica João, “Nem
mesmo Jesus confiava neles, porque conhecia a todos; e não necessitava de que
alguém testificasse do homem, porque ele bem sabia o que havia no homem” [Jo
2.24, 25].
Pois, se muitos não decaíssem da fé comum (chamo-a comum pela grande semelhança
e afinidade da fé temporária com a fé viva e permanente), Cristo não teria
dito aos discípulos: “Se permanecerdes em minha palavra, verdadeiramente sois
meus discípulos, e conhecereis a verdade, e a verdade vos fará livres” [Jo 8.31, 32].
Pois estava dirigindo a palavra àqueles que haviam abraçado seu ensino e os exorta
ao progresso da fé, para que não viessem, por seu torpor, a extinguir a luz que lhes
fora dada. Por isso Paulo reivindica a fé real exclusivamente para os eleitos [Tt 1.1],
significando que muitos fenecem, porque não têm exibido a raiz viva. Assim também
fala Cristo em Mateus [15.13]: “Toda árvore que meu Pai não plantou será
desarraigada.”
Em outros, sua zombaria é ainda mais crassa, os quais não se acanham de querer
enganar a Deus e aos homens. Contra essa espécie de homens, que profanam impiamente
a fé com falaz pretexto, Tiago investe resoluto [Tg 2.14-26]. Tampouco
Paulo requereria dos filhos de Deus “uma fé não fingida” [1Tm 1.5], a não ser pelo
fato de que muitos arrogam para si ousadamente o que não têm, e com vã aparência
enganam ou a outros, ou por vezes a si próprios. E assim ele compara a boa consciência
a uma arca em que se guarda a fé, porquanto muitos, ao desviar-se daquela,
tornaram-se náufragos no tocante a esta [1Tm 1.19].
João Calvino
Escola Bíblica Conhecedores da verdade - O objetivo deste blog e levar você a conhecer a verdade que liberta de todo o Engano. Nesses últimos tempos, muito se tem ouvido falar do evangelho de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, porém de maneira distorcida e muitas vezes pervertida, com heresias disfarçada etc. “ ...e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.” João 8.32