Os que costumam impor o que Paulo diz, a saber: “Se alguém tem toda a fé a
ponto de remover montanhas, entretanto não tem amor, esse tal nada é” [1Co 13.2],
citação com que “deformam” a fé, concebida como destituída do amor, não atentam
para o que seja a fé para o Apóstolo nesta passagem. Ora, depois de haver discorrido,
no capitulo precedente, acerca dos vários dons do Espírito, entre os quais incluíra
as variedades de línguas, os poderes miraculosos, a profecia [1Co 12.4-10], e
exortara os coríntios “a buscar dentre eles os melhores”, isto é, os que resultassem
em mais fruto e proveito a todo o corpo da Igreja, acrescenta haver-lhes de mostrar
“um caminho ainda mais excelente” [1Co 12.31]. Todos os dons desta espécie, por
mais excelentes que sejam em si, devem, todavia, ser estimados por nada, a não ser
que sirvam ao amor. Ora, eles foram dados para a edificação da Igreja, e a não ser
que a ela sejam aplicados, perdem seu benefício.
Para provar isto, Paulo usa de distributividade, reenumerando esses mesmos
dons aos quais referira um pouco antes, mas agora sob outros designativos. Assim é
que usa os termos poderes e fé na mesma acepção, isto é, para designar a faculdade
de operar milagres. Portanto, como este assim chamado poder ou fé é um dom
particular de Deus, do qual um ímpio qualquer pode não só valer-se, mas até abusar,
como o dom de línguas, como a profecia, como outros carismas, não é de admirarse
do amor seja separado!
Todo o erro destes, porém, está nisto: posto que o vocábulo fé é polu,shmon
[P(lys@<(n – de muitas conotações], por não observar-se a diversidade de significado,
contendem exatamente como se, por toda parte na Escritura, a acepção lhe
fosse sempre a mesma. A passagem de Tiago [2.21] que citam em apoio do mesmo
erro será discutida em outro lugar. Ainda que, por interesse didático, enquanto queremos
pôr à mostra qual seja o conhecimento de Deus nos ímpios, de fato admitimos
serem muitas as formas da fé, entretanto reconhecemos e proclamamos, como
a Escritura ensina, que a fé dos piedosos é uma e única.
Certamente que muitíssimos crêem que Deus existe e julgam que são verídicas a
história do evangelho e as demais partes da Escritura, quase como costuma ser o
juízo acerca daquelas coisas que ou se narram como feitas no passado, ou, presentes,
nós mesmos as temos testemunhado. Há também aqueles que vão além, porque
não só têm a Palavra de Deus por oráculo certíssimo, nem negligenciam totalmente
seus preceitos, mas até de certa forma se deixam afetar pelas ameaças e promessas.
A tais, na verdade, atribui-se o testemunho da fé, mediante kata,crhsin [Katáchr@sin
– uso impróprio], uma vez que não resistem à Palavra de Deus em manifesta impiedade,
nem a rejeitam nem a desprezam; pelo contrário, antes lhe exibemcerta aparência
de obediência.
João Calvino