Neste sentido, Pedro diz que “Cristo ressuscitou,
dissipados os tormentos da morte, pelos quais era impossível fosse ele retido,
ou superado” [At 2.24]. Pedro não menciona a morte simplesmente; pelo
contrário, declara expressamente que o Filho de Deus foi cercado por tormentos
e angútias, que são fruto da maldição e da ira de Deus, a qual é o princípio e
origem da morte.268 Pois teria sido algo de bem pouca importância sujeitar-se
ele à morte e avançar com toda tranqüilidade como se tudo não passasse de
divertimento? Esta, porém, foi a verdadeira demonstração de sua imensa
misericórdia: não fugir à morte que tão profundamente temia! Nem há dúvida de
que o Apóstolo queira ensinar o mesmo na Epístola aos Hebreus, onde escreve que
“Cristo foi ouvido por seu temor” [Hb 5.7], termo este que uns traduzem como
reverência ou piedade; mas que isso está fora de propósito, a própria matéria o
evidencia e também a própria forma de falar. Cristo, portanto, orando com
lágrimas e forte clamor, é ouvido por seu temor, não para que seja isento da
morte, mas para que não seja por ela tragado como um pecador, pois ali nossa
pessoa era representada. E, de fato, não há abismo mais formidável que se possa
imaginar que te sentires abandonado e alienado de Deus; e quando o invocas, não
és ouvido, justamente como se ele próprio houvesse conspirado para tua ruína.
Vemos que Cristo foi a tal ponto acabrunhado, que se viu coagido, torturando-o
a angústia, e exclamando: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” [Sl
22.1; Mt 27.46]. Ora, o que alguns querem, ter ele assim falado antes em função
da opinião de outros que de seu próprio sentimento, de maneira alguma é
provável, quando se faz evidente ter sido sua exclamação derivada da aflição do
íntimo de sua alma.
Contudo, não somos de parecer que Deus jamais lhe tenha sido inimigo ou
estivesse irado com ele. Como, pois, se iraria Deus com o Filho amado “em quem
sua alma se comprazia” [Mt 3.17]? Ou, como, por sua intercessão, Cristo
aplacaria o Pai em favor de outros, se o tivesse irado contra si? Nós, porém,
estamos afirmando que ele suportou o peso da severidade divina, porquanto,
ferido e afligido pela mão de Deus, experimentou todos os sinais de um Deus irado
e punitivo. Portanto, Hilário arrazoa dizendo que, em virtude dessa descida de
Cristo ao Hades, nós conseguimos que a morte fosse aniquilada. Ele não discrepa
de nossa opinião em outras passagens, por exemplo: “A cruz, a morte e os
infernos são nossa vida.” De igual modo, em outro lugar: “O Filho de Deus está
nos infernos, mas o homem é transportado ao céu.” E por que estou citando o
testemunho de um cidadão particular, quando o Apóstolo, rememorando este fruto
da vitória de Cristo, afirma que aqueles que, pelo temor da morte, estavam
sujeitos à servidão pela vida toda, foram libertados” [Hb 2.15]. Portanto,
era-lhes indispensável que vencessem esse medo que, por natureza,
constantemente atormenta e acossa a todos os mortais, o que não se pôde
efetuar, senão lutando contra ele. Dentro em pouco se evidenciará mais
claramente que essa angústia não era comum nem concebida por uma causa leve.
Desse modo, ao entrar em luta pessoal com o poder do Diabo, com o horror da
morte, com os tormentos dos infernos, resultou que não só alcançasse a vitória
sobre eles, mas até celebrasse o triunfo, para que na morte já não temamos
aquelas coisas que nosso Príncipe tragou.
João Calvino