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segunda-feira, 27 de agosto de 2018

O CONCEITO DE FÉ À LUZ DE HEBREUS 11.1, A QUAL SE MANIFESTA NO AMOR A DEUS

Portanto, como o vejo, a natureza da fé não pode ser explicada mais claramente do que pela substância da promessa, na qual, à guisa de um firme fundamento, se apóia de tal maneira que, se for suprimida, irá completamente ao chão; ou, melhor, se reduzirá a nada. Por isso tomamos daí nossa definição, a qual, entretanto, de modo algum é alheia àquela definição, ou, melhor, descrição do Apóstolo, a qual ele anexa a seu arrazoado, onde ensina que “a fé é a subsistência das coisas que se devem esperar, a evidênciadas coisas que não se vêem”[Hb 11.1]. Ora, por u`po,stasin [hyp(stasin – subsistência], vocábulo que emprega nessa passagem, ele entende como se fosse um sustentáculo ao qual a mente piedosa se arrime e sobre o qual descanse. Como se estivesse dizendo que a própria fé é como que uma posse certa e segura dessas coisas que nos foram prometidas por Deus. A não ser que alguém prefira tomar u`po,stasin no sentido de confiança, o que não me desagrada, se bem que abraço aquilo que é mais aceito. Por outro lado, para que fizesse saber que até o dia supremo, quando “serão abertos os livros” [Dn 7.10; Ap 20.12], há coisas mais sublimes do que as que podem ser percebidas por nossa sensibilidade, ou divisadas por nossos olhos, ou tocadas por nossas mãos, e não de outro modo são elas, no ínterim, por nós possuídas, a não ser que transcendamos todo o alcance de nossa mente e elevemos nossa capacidade acima de todas as coisas que estão no mundo; enfim, nos elevemos além de nós próprios. Acrescentou que esta certeza de possuir é de coisas que jazem na esperança, e por isso elas não são vistas. Certamente que, como o escreve Paulo [Rm 8.24], evidência não é esperança, nem são objeto de nossa esperança as coisas que vemos. Quando, pois, a chama indicação, ou prova, ou, como a traduziu freqüentemente Agostinho, convicção de coisas não presentes (ora, em grego, o termo é e;legcoj [$l$nch(s]), fala exatamente como se dissesse que a evidência de coisas que não aparecem, a visão dessas coisas que não se vêem, a clarificação de coisas obscuras, a presença de coisas ausentes, a manifestação de coisas ocultas. Ora, os mistérios de Deus, cuja espécie são as coisas que dizem respeito a nossa salvação, não se podem discernir em si mesmas e, como se diz, em sua própria natureza; com efeito, só o podemos contemplar em sua Palavra, cuja verdade a tal ponto nos deve ter sido inculcada, que temos de considerar como realizado e cumprido tudo quanto ele nos disse. Aliás, como o ânimo se alçará para provar o gosto da divina bondade, sem que profundamente se inflame, ao mesmo tempo, a corresponder o amor de Deus? Pois, de fato, essa afluência de dulçor que Deus tem reservado aos que o temem não pode ser conhecida, se ao mesmo tempo não nos tocar profundamente o coração. Mas, a quem uma vez tocou, o arrebata e o separa inteiramente para si. Daí, não é de admirarse ao coração perverso e tortuoso jamais domine esse afeto pelo qual, transportados ao próprio céu, somos admitidos aos mais recônditos tesouros de Deus e aos mais sagradosrecessos de seu reino, os quais não podem ser profanados pelo ingresso de um coração impuro. Ora, o que os escolásticos ensinam: que o amor precede à fé e à esperança, é mero delírio, porquanto somente a fé é que gera em nós primeiramente o amor. Quanto mais acuradamente fala Bernardo: “O testemunho da consciência”, diz ele, “que Paulo chama a glória dos piedosos [2Co 1.12], creio consistir em três coisas! Ora, é necessário antes de tudo crer que não se pode ter remissão de pecados senão pela misericórdia de Deus; então, que nada, absolutamente, se pode ter de boa obra, a não ser que também isto ele próprio conceda; finalmente, que não se pode merecer a vida eterna por nenhuma obra, salvo se também graciosamente ela seja concedida.” Pouco depois Bernardo acrescenta que essas coisas não são suficientes, contudo, são um como que princípio da fé, visto que, ao crer que os pecados não podem ser perdoados senão por Deus, ao mesmo tempo é preciso sustentar que eles nos foram perdoados, até que também sejamos persuadidos pelo testemunho do Espírito Santo de que a salvação nos foi assegurada. Pelo fato de Deus perdoar os pecados, de ele mesmo propiciar os méritos, e de ele mesmo distribuir os galardões, não podemos ficar estacionários nesse princípio. Estas e outras questões, porém, terão de ser tratadas em seus devidos lugares. Baste-nos no momento sabermos o que é a fé.

João Calvino