Portanto, é justo atribuir-se este mal, como inúmeros outros, aos escolásticos,
pelo fato de tentarem ocultar a Cristo sob um véu. Ora, a não ser que lhe volvamos
diretamente a visão, resultará que sempre divagaremos por muitos labirintos. Além
disso, com sua caliginosa definição, enfraquecem e quase aniquilam toda a força da
fé; engendraram a ficção da “fé implícita”, expressão com que, adornando a mais
crassa ignorância com grande dano, enganam ao mísero populacho. Mais ainda,
para falar mais verdadeira e mais abertamente as coisas como o são, esta ficção não
apenas sepulta a verdadeira fé, mas até de todo a destrói.
Porventura crer seria nada entender, contanto que alguém submeta obedientemente
seu entendimento à Igreja? A fé não se assenta na ignorância, mas no conhecimento,
e certamente não apenas o conhecimento de Deus em si mesmo, como também da divina vontade. Porque não conseguimos a salvação por estarmos dispostos
a aceitar como verdade tudo quanto a igreja tenha prescrito, ou porque lhe
relegamos a função de indagar e conhecer. Alcançamo-la, porém, quando reconhecemos
que, feita a reconciliação através de Cristo [2Co 5.18, 19], Deus nos é o Pai
propício e, na verdade, Cristo nos foi dado como justiça, santificação e vida. Afirmo
que, por meio deste conhecimento, não pela submissão de nosso sentimento, é que
obtemos ingresso no reino dos céus. Ora, quando o Apóstolo diz: “Com o coração se
crê para a justiça e com a boca se faz confissão para a salvação” [Rm 10.10], não
indica ser suficiente que alguém creia implicitamente o que não entenda, nem mesmo
investigue; ao contrário, requer reconhecimento explícito da bondade divina, na
qual se assenta nossa justiça.
João Calvino