Com efeito, eles torcem mui ineptamente as referências
que alegam em confirmação de seu erro. Tampouco conseguem alguma coisa com as
frívolas sutilezas com que tentam diluir os argumentos que já mencionei de
nossa parte. Marcião imagina que Cristo se revestiu de um fantasma em vez de um
corpo; por isso, em outro lugar, se diz que foi “feito à semelhança do homem” e
“achado em figura de homem” [Fp 2.7-8]. Ele, porém, leva bem poucoem conta o
que pretende Paulo aí. Pois ele aí não quer ensinar que natureza de corpo
Cristo tomou para si, mas, embora pudesse de direito exibir sua deidade, nada
ostentou em sisenão o que era próprio do homem abjeto e desprezado. Ora, para
que mediante seu exemplo nos exorte à submissão, mostra que, embora fosse Deus
e pudesse fazer sua glória prontamente manifesta ao mundo, contudo abriu mão de
seu direito e esvaziou-se a si mesmo espontaneamente, porquanto, de fato, se
revestiu da imagem de servo, e contente com essa humildade sofreu através do
véu da carne que velava sua Deidade [Fp 2.5- 7]. Na verdade, Paulo aqui não
está ensinando que Cristo era no tocante à sua substância, mas como ele se
conduziu. Além do mais, de todo o contexto facilmente se depreende que Cristo
se esvaziou numa verdadeira natureza de homem. Ora, que quer isto dizer: “foi
achado em figura
como um homem” [Fp 2.8], senão que por um tempo a glória divina não
resplandeceu, mas, em uma condição vil e abjeta, apenas se manifestou a forma
humana? Aliás, nem de outra sorte procederia essa afirmação de Pedro, ou, seja:
“morto na carne, vivificado no Espírito” [1Pe 3.18], a não ser que o Filho de
Deus fosse “fraco” numa natureza de homem. Paulo explica issomais claramente,
asseverando que Cristo sofreu em razão da fraqueza da carne [2Co 13.4]. E a
isso se lhe estende a exaltação: afirma-se expressamente haver Cristo alcançado
nova glória depois que a si mesmo se esvaziou, o que não se quadraria
convenientemente, senão a um homem dotado de carne e alma. Mani forja um corpo
etéreo, pelo fato de Cristo chamar-se “o Segundo Adão, vindo do céu, é celeste”
[1Co 15.47]. Mas, o Apóstolo nem mesmo está tratando aí da essência celestial
do corpo de Cristo, mas do poder espiritual que, derramado por Cristo, nos
vivifica. Desse modo, como já vimos, Pedro e Paulo o distinguem de sua carne.
Antes, pelo contrário, desta passagem se firma enfaticamente a doutrina
referente à carne de Cristo que vigora entre os ortodoxos. Pois, a não ser que
Cristo tivesse conosco uma só natureza corporal, vão seria o arrazoado que
Paulo desenvolve com tanta veemência: “Se Cristo ressuscitou, nós também
haveremos de ressuscitar; se nós não ressuscitamos, tampouco Cristo ressuscitou”
[1Co 15.13-17]. Quaisquer que sejam as sutilezas com que tentem safar-se, quer
os maniqueus antigos, quer seus discípulos recentes, não terão como
desvencilhar-se. Absurda é a evasiva que sutilmente aventam: que Cristo é
chamado Filho do Homem, porque foi prometido aos homens, visto ser evidente
que, no modo hebraico de falar, denomina-se filho do homem ao homem como tal.
Cristo, com efeito, reteve, não duvidosamente, essa locução de sua própria
língua. Que também se haja de entender por filhos de Adão, deve estar além de
controvérsia. E, para que não avancemos tanto, será amplamente suficiente a
referência do Salmo oitavo, o qual os apóstolos aplicam a Cristo: “Que é o
homem, que dele te lembres, ou o filho do homem, que o visites?” [Sl 8.4; Hb
2.6]. Por esta figura se exprime a verdadeira humanidade de Cristo, porque,
embora não fosse imediatamente gerado de um pai modal, sua origem, contudo,
fluiu de Adão. Aliás, tampouco de outra sorte procederia o que já citamos:
Cristo veio a ser participante da carne e do sangue, para que a si agregasse
filhos para a obediência de Deus [Hb 2.14], palavras com que Cristo se declara
abertamente companheiro e participante conosco da mesma natureza. Querendo
dizer com isto: “de um só procederamo autor da santidade e os que são
santificados” [Hb 2.11a]. Ora, que isto se refere à comunhão de natureza,
evidencia-se à luz do contexto, pois acrescenta em seguida: “Por isso não se
envergonha de chamá-los irmãos” [Hb 2.11b]. Pois, se dissesse antes que os
fiéis procedem de Deus, que razão haveria para envergonhar-se de tão grande
dignidade? Mas, porque, por sua imensa graça, Cristo se associa aos sórdidos e
ignóbeis, por isso se diz que ele não se envergonha.
Em vão, porém, objetam, dizendo que, deste modo, os
ímpios haverão de ser irmãos de Cristo, porquanto sabemos que os filhos de Deus
não são os que nascem da carne e do sangue [Jo 1.13], mas do Espírito, mediante
a fé. Portanto, a carne sozinha não faz a conjunção fraterna. Mas, ainda que só
aos fiéis atribui o Apóstolo esta honra, que são de uma só natureza com Cristo,
não se segue, entretanto, que da mesma fonte, segundo a carne, não nasçam os
incrédulos. Da mesma forma, onde dizemos que Cristo se fez homem para que nos
fizesse filhos de Deus, esta expressão não se estende a todos e quaisquer
indivíduos, porquanto a fé se interpõe como medianeira, a qual nos enxerta
espiritualmente no corpo de Cristo. Nesciamente, promovem eles contenda também
em relação ao termo primogênito. Alegam que Cristo deveria ter nascido de Adão
imediatamente, de início, para que “fosse o primogênito entre irmãos” [Rm
8.29]. Ora, primogenitura aqui se refere não à idade, mas ao grau de honra e
eminência de poder. Tampouco tem mais plausibilidade a observação de que Cristo
assumiu a natureza do homem, não dos anjos [Hb 2.16], visto haver recebido o
gênero humano em sua graça. Pois, para exaltar a honra com que Cristo nos
dignou, o Apóstolo nos compara aos anjos que, neste aspecto, foram relegados a
segundo plano. E se cuidadosamente for pesado o testemunho de Moisés, no qual
diz que a semente da mulher haveria de esmagar a cabeça da serpente [Gn 3.15],
se porá termo final a toda a controvérsia. Pois aí a referência não é só a
Cristo, mas a todo o gênero humano. Visto que a vitória nos teria que ser adquirida
por Cristo, Deus proclama, em termos gerais, que a linhagem da mulher haveria
de prevalecer sobre o Diabo. Donde se segue que Cristo foi gerado do gênero
humano, pois o desígnio de Deus era consolar e dar esperança a Eva, a quem
fala, para que ela não sucumbisse à tristeza.
João Calvino