Além disso, o temor do Senhor, cujo testemunho a cada passo se atribui aos
santos nas Escrituras, e o qual, em algumas ocasiões, se designa de “o começo da
sabedoria” [Sl 111.10; Pv 1.7]; em outras, a própria sabedoria [Jó 28.28]; ainda que
seja um e único, todavia emana de duplo afeto. Pois Deus tem em si a dignidade de
Pai e de Senhor. E assim, quem o queira cultuar devidamente, diligenciará por
mostrar-se não só ser-lhe filho obediente, mas também servo obsequioso. A obediência
que se rende como seu Pai, o Senhor, mediante o Profeta, denomina honra; o
serviço que se exibe como seu Senhor, denomina temor. “O filho”, diz ele, “honra
ao pai e o servo honra a seu senhor. Se eu sou Pai, onde está minha honra? Se eu sou
Senhor, onde está meu temor?” [Ml 1.6]. Mas, por mais que os distingas, vês como,
ao mesmo tempo, um elemento se funde no outro. Portanto, o temor do Senhor deve
ser a reverência amalgamada dessa honra e desse temor.
Nem é de admirar se o mesmo ânimo agasalha a ambos esses sentimentos, pois
aquele que pondera consigo que gênero de Pai Deus nos é tem suficiente razão,
ainda que não existisse nenhum inferno para sentir maior horror de ofendê-lo do
que de sofrer qualquer morte. Mas, por outro lado, segundo a desregrada inclinação
de nossa carne para o vicioso impulso de pecar, para que a coibamos de todos os
modos, nos é imposto igualmente lançar mão deste pensamento: que ao Senhor, sob
cujo poder vivemos, é abominação toda iniqüidade, de cuja vingança não evadirão
aqueles que, vivendo desprendidamente, porventura tenham provocado contra si
sua ira.
João Calvino