Em outro lugar, quando tivemos de tratar da corrupção da natureza, mostramos
mais plenamente que os homens não são idôneos a crer. E assim não fatigarei os
leitores, repetindo as mesmas coisas. É suficiente que, por meio de Paulo, a própria
fé com a qual somos dotados pelo Espírito seja chamada “espírito de fé” [2Co 4.13],
a qual, porém, não temos por natureza. Por isso, ele ora para que nos tessalonicenses “cumpra Deus em poder todo seu beneplácito e a obra da fé” [2Ts 1.11], onde à
fé chama obra de Deus; e em vez de caracterizá-la com um adjetivo, dizendo ser ela
beneplácito, nega ser a fé produto do próprio sentimento do homem; não contente
com isso, acrescenta que ela é expressão do poder divino. Na Epístola aos Coríntios,
onde diz que a fé não depende da sabedoria dos homens, pelo contrário é fundamentada
no poder do Espírito [1Co 2.4, 5], na verdade ele está falando de milagres
externos; mas, porque os réprobos se fazem cegos em sua contemplação deles,
compreende também ser ela aquele selo interior, de que faz menção em outro lugar
[Ef 1.13; 4.30]. E, para que em tão preclaro dom Deus ilumine ainda mais sua liberalidade,
não concede dele a todos indiscriminadamente, mas por privilégio regular
o concede àqueles a quem o queira.
Já citamos previamente comprovações deste ponto, dos quais, fiel intérprete,
exclama Agostinho:5
“Para ensinarque até o próprio crer é um dom, não um mérito,
diz o Salvador: ‘Ninguém vem a mim, a não ser que meu Pai o tenha trazido’ [Jo
6.44], e ‘aquele a quem foi dado por meu Pai’ [Jo 6.65]. É estranho que dois ouvem
a Palavra: um a despreza, outro a abraça. O que a menospreza, que o impute a si
mesmo; o que a abraça, que não se vanglorie nisso.”6
Em outro lugar: “Por que é
dado a um, não a outro? Não me acanho em dizer: Este é o profundo mistério da
cruz! Da profundeza dos juízos de Deus, que não podemos perscrutar, procede tudo
quanto podemos. O que posso, vejo; donde posso, não vejo, exceto que, até onde
vejo, isso provém de Deus. Mas, por que esse e não aquele? É muito para mim. É um
abismo: a profundeza da cruz! Posso exclamar em admiração, não posso demonstrálo
com argumento.”
A síntese desta matéria se reduz a isto: Quando, pelo poder de seu Espírito,
Cristo nos ilumina a fé, ao mesmo tempo nos enxerta em seu corpo, para que nos
façamos participantes de todas as suas benesses.
João Calvino