Pois, se sua filiação, por assim dizer, teve princípio
desde que se manifestou na carne, segue-se ter sido ele o Filho também com
respeito à natureza humana. Serveto e desvairados semelhantes querem que Cristo
seja o Filho de Deus só quando apareceu na carne, porquanto à parte da carne
não pôde ele ser designado com este título. Respondam-me, pois: ele é o Filho
de conformidade com ambas essas naturezas e em respeito a uma e outra delas?
Assim, realmente, palram eles. De maneira bem distinta, porém, ensina Paulo.
Confessamos, sem dúvida, que Cristo se chama o Filho em relação à carne humana;
contudo, não como os fiéis, filhos apenas por adoção e graça; ao contrário, o
Filho verdadeiro e por natureza, e por isso o único, de sorte que, mediante
esta marca, seja distinguido de todos os demais. Pois, a nós que fomos
regenerados para uma nova vida, Deus nos digna do título de filhos, mas o
título Filho, verdadeiro e unigênito, Deus só confere a Cristo. Como, porém, é
único em tão grande número de irmãos, senão porque possui por natureza o que
nós recebemos por dádiva? E à pessoa toda do Mediador estendemos esta honra:
que é verdadeira e propriamente o Filho de Deus, que não só foi nascido da
Virgem, mas também se ofereceu ao Pai por sacrifício na cruz; contudo, com
respeito à Divindade, como o ensina Paulo, quando se diz “separado para o
evangelho de Deus, que antes prometera acerca de seu Filho, que foi gerado da semente
de Davi segundo a carne e declarado Filho de Deus em poder” [Rm 1.14]. Por que,
enunciando-o expressamente como Filho de Davi segundo a carne, diria,
separadamente, haver ele sido declarado Filho de Deus, se não quisesse com isso
indicar que isso depende de outra parte além da própria carne? Ora, no mesmo
sentido em que Paulo diz em outro lugar [2Co 13.4], que Cristo sofreu pela
fraqueza da carne e que ressuscitou pelo poder do Espírito, assim agora aqui
estabelece a diferença de uma e outra natureza. Indubitavelmente, é necessário
que estas pessoas exaltadas confessem, querendo ou não, que assim Jesus Cristo
tomou de sua mãe uma natureza em virtude da qual é chamado Filho de Davi, da
mesma maneira tem da parte do Pai outra natureza pela qual é chamado Filho de
Deus, que é muito distinta da natureza humana. A Escritura o adorna com duplo título, chamando-o,
indistintamente, ora o Filho de Deus, ora o Filho do Homem. Quanto ao segundo
destes títulos, é indubitáve que é chamado assim em conformidade com o uso comum
da língua hebraica, uma vez ser ele da progênie de Adão. Por outro lado, afirmo
que ele é chamado o Filho de Deus em razão de sua Deidade e de sua essência
eterna, porquanto não menos próprio é referir-se à natureza divina por ser ele
chamado o Filho de Deus, do que referir-se à natureza humana por ser chamado o
Filho do Homem. Em conclusão, nesta passagemque citei [Rm 1.1-4], Paulo não
entende de outra maneira ter sido o Filho de Deus declarado em poder Aquele
que, segundo a carne, foi gerado da semente de Davi, do que ensina em outro
lugar [Rm 9.5], a saber: ser Cristo o Deus bendito para sempre, o qual descende
dos judeus segundo a carne. Ora, se em ambas essas passagens se assinala a
distinção da dupla natureza, com que direito negarão ser o Filho de Deus com
respeito à natureza divina Aquele que, segundo a carne, é igualmente o Filho do
Homem?
João Calvino