REALIDADE DA NATUREZA HUMANA DE CRISTO
Quanto à divindade de Cristo, a qual em outro lugar
foi provada mediante claros e firmes testemunhos, seria supérfluo discuti-la de
novo agora, salvo engano meu. Resta, portanto, ver como ele desempenhou as
funções de Mediador, revestido de nossa carne. É bem verdade que a genuinidade
da natureza humana de Cristo foi outrora impugnada tanto pelos maniqueus quanto
pelos marcionitas, dos quais estes, realmente, fantasiavam para si um espectro
em lugar do corpo de Cristo; aqueles, porém, o sonhavam provido de um corpo
celestial. A ambos, porém, resistem testemunhos da Escritura, não apenas
muitos, como também poderosos. Ora, a bênção não é prometida ou numa semente
celestial, ou num espectro de homem, mas na semente de Abraão e Jacó. Tampouco
é o trono eterno prometido a um homem etéreo, mas ao filho de Davi e ao fruto
de seu ventre. Donde também, quando manifesto na carne, se chama “o filho de
Davi e de Abraão” [Mt 1.1], não apenas por haver nascido do ventre da Virgem, e
contudo criado no ar, mas porque, como o interpreta Paulo, “foi feito da
semente de Davi segundo a carne” [Rm 1.3]; assim como, em outro lugar [Rm 9.5],
o mesmo Apóstolo ensina haver ele descendido dos judeus. Razão por que o
próprio Senhor, não contente com o termo homem, constantemente se chama também
o Filho do Homem, querendo exprimir mais claramente ser um homem realmente
gerado da semente humana. Posto que o Espírito Santo, tantas vezes e por tantos
meios, e com tanto cuidado e simplicidade, expôs uma coisa que em si mesma é um
tanto obscura, quem poderia imaginar que existisse homens tão despudorados que
se atreveriam a afirmar o contrário?232 E, no entanto, outros testemunhos ainda
se nos oferecem à mão, se mais nos apraza amontoar, como este de Paulo, a
saber: haver Deus enviado seu Filho nascido de mulher [Gl 4.4], e em muitos
lugares, nos quais se mostra ter sido ele sujeito à fome, à sede, ao frio e a
outras necessidades de nossa natureza. Mas, dentre muitos, devem escolher-se de
preferência aqueles que possam conduzir à edificação das almas na verdadeira
confiança, como quando se diz que de modo algum, ainda que aos anjos se tenha
conferido tanta honra, ele assumisse sua natureza; pelo contrário, ele assumiu
a nossa natureza para que, na carne e no sangue, mediante a morte, destruísse
aquele que possuía o poder de morte [Hb 2.14-16]. Igualmente, em virtude do
benefício desta associação com ele, somos contados por seus irmãos [Hb 2.11].
De igual modo, “Convinha que em tudo fosse semelhante aos irmãos, para ser
misericordioso e fiel sumo sacerdote” [Hb 2.17]; “não temos um sumo sacerdote
que não se compadeça de nossas fraquezas” [Hb 4.15]; e outros afins. Ao mesmo
procede o que abordamos pouco antes: concorda com isso que os pecados do mundo
fossem expiados em nossa carne, o que é claramente afirmado por Paulo [Rm 8.3].
E, certamente, por isso nos pertence tudo quanto o Pai conferiu a Cristo, que
ele é a Cabeça, da qual todo o corpo, unido através das junturas, recebe ao
mesmo tempo o crescimento [Ef 4.15, 16]. Além disso, não procederá de outra
forma o que se diz: “ele não deu o Espírito por medida” [Jo 3.34], para que “de
sua plenitude todos recebamos” [Jo 1.16], uma vez que nada há mais absurdo do
que ser Deus enriquecido em sua essência por um dom adventício. Também por esta
razão diz o próprio Cristo, em outro lugar: “Por amor deles eu me santifico a
mim mesmo” [Jo 17.19].
João Calvino