Estas coisas não poderiam oferecer segurança, se não
encontrássemos a cada passo, nas Escrituras, muitos lugares para provar que
nenhuma das coisas que temos dito é de invenção dos homens. O que Cristo dizia
de si próprio: “Antes que Abraão nascesse, eu sou” [Jo 8.58], de modo algum
podia convir à humanidade. Tampouco me é desconhecido com que falácia os
espíritos equivocados depravam esta passagem, isto é, que ele foi anterior a
todos os séculos porque já então fora conhecido de antemão como Redentor, tanto
no desígnio do Pai, quanto na mente dos piedosos. Mas, visto que de sua
essência eterna ele distingue claramente o dia de sua manifestação, e da
antigüidade expressamente arroga a si autoridade em que excele a Abraão, não
dubiamente a si reivindica o que é próprio da divindade. Que Paulo proclama ser
ele “o primogênito de toda a criação” [Cl 1.15], “que já existia antes de todas
as coisas e por quem todas as coisas subsistem” [Cl 1.17], que também
reivindica ter sido “glorioso junto ao Pai antes que o mundo fosse estabelecido”
[Jo 17.5], e que “trabalha juntamente com o Pai” [Jo 5.17], isso de maneira
nenhuma compete ao homem. Estas, portanto, e asseverações afins, certamente são
atribuídas exclusivamente à divindade. Entretanto, o fato de se chamar o servo
do Pai [Is 42.1], de se narrar “haver ele crescido em idade e sabedoria diante
de Deus e dos homens” [Lc 2.52], que “não buscava sua própria glória” [Jo
8.50], que “desconhecia o dia final” [Mc 13.32], que “não falava por si mesmo”
[Jo 14.10], “nem fazia sua própria vontade” [Jo 6.38], de estar expresso que
foi “visto e apalpado” [Lc 24.39; 1Jo 1.1], tudo isso é exclusivamente da
humanidade. Ora, na extensão em que é Deus, não pode ser aumentado em qualquer
coisa, e tudo faz por amor de si mesmo, nem lhe é desconhecida coisa alguma,
tudo faz pelo arbítrio de sua vontade e é invisível e impalpável. Todavia,
tampouco estas coisas são prescritas exclusivamente à sua natureza humana; pelo
contrário, ele as toma para si, até onde convêm à pessoa do Mediador.
Comunicação de idiomas ou propriedades, porém, é o que diz Paulo: “com seu
sangue Deus adquiriu para si a Igreja” [Atos 20.28], e “o Senhor da glória foi
crucificado” [1Co 2.8]. De igual modo, o que diz João: “apalpamos a Palavra da
Vida” [1Jo 1.1]. Com toda certeza Deus não tem sangue, nem sofre, nem pode ser
tocado por mãos. Mas, visto que Aquele que era verdadeiro Deus e homem, Cristo,
crucifi cado, derramou seu sangue por nós, coisas que se realizaram na natureza
humana são impropriamente, contudo não sem razão, transferidas à divindade.
Semelhante é o exemplo onde João ensina que Deus deu sua vida por nós [Jo
3.16]. Logo, também aí se comunica com a outra natureza uma propriedade da
humanidade. Por outro lado, quando Cristo dizia, ainda em seu labor na terra,
que “ninguém havia subido ao céu, a não ser o Filho do homem, que está no céu”
[Jo 3.13], certamente, segundo o homem e na carne que havia vestido, não estava
então no céu, mas, em vista do fato de que ele mesmo era Deus e homem em função
da união da dupla natureza, dava a uma o que era da outra.
João Calvino