Além disso, onde ensina que “desenvolvamos nossa salvação com temor e tremor”
[Fp 2.12], não está exigindo outra coisa senão que nos acostumemos a atentar para o poder do Senhor, com sincera depreciação de nós mesmos. Com efeito, nada
nos desperta tanto a depositar no Senhor a confiança e certeza de espírito quanto a
falta de confiança em nós mesmos e a ansiedade oriunda da consciência de nossa
situação calamitosa. Deve-se tomar neste sentido o que lemos no Profeta: “Na multidão
de tua bondade, adentrarei teu templo, adorarei em temor” [Sl 5.7]; onde, com
muito tino, une a ousadia da fé, que se arrima na misericórdia de Deus com o reverente
temor, que necessariamente se apodera de nós cada vez que, comparecendo
ante a presença da divina Majestade, percebemos por seu esplendor quão grande é
nossa indignidade. Salomão também, com razão, quando pronuncia ser bem-aventurado
o homem que mantém o próprio coração em temor constante, visto que, por
seu endurecimento, é ele precipitado no mal [Pv 28.14]. Mas ele se refere a um certo
gênero de temor que nos faz mais cuidadosos e prudentes, sem nos afligir até a
desesperação; isto é, quando nosso ânimo em si mesmo confuso se reconforta em
Deus; em si mesmo abatido, se ergue; de si mesmo desconfiado, se apoia na esperança
que tem depositado nele. Portanto, nada impede que os fiéis tenham temor e
ao mesmo tempo desfrutem do consolo da plena segurança, posto que às vezes ponderam
sua vaidade, e outras elevam sua mente a Deus.
Como, dirá alguém, é possível que tenham morada no mesmo ânimo o pavor e a
fé? Exatamente como, em contrapartida, assim procedem o torpor e a ansiedade.
Ora, ainda quando os ímpios busquem para si a impassividade, de modo que nenhum
temor de Deus os inquiete, todavia, o juízo de Deus os acossa, para que não
alcancem o que desejam. Dessa forma, nada impede que Deus exercite os seus à
humildade, de sorte que, ao militar valentemente, a si se contenham sob o freio do
comedimento. E de fato transparece do contexto haver sido esse o desígnio do Apóstolo,
onde assinala como causa do temor e tremor o beneplácito de Deus, mercê do
qual confere aos seus não só o benquerer, mas também incansavelmente o executar
[Fp 2.12, 13]. Convém tomar neste sentido o vaticínio do Profeta: “Os filhos de
Israel tremerão diante de Deus e de sua bondade” [Os 3.5]; porquanto a piedade não
só gera a reverência por Deus, mas ainda imbui o próprio dulçor e suavidade da
graça ao homem em si mesmo abatido, ao mesmo tempo de temor e admiração, de
sorte que dependa de Deus e se sujeite humildemente a seu poder.
João Calvino