Os absurdos com que nos querem gravar estão repletos
de calúnias pueris. Consideram ser vergonhoso e desonroso o fato de Cristo
haver procedido de homens, porque não teria podido eximir-se da lei comum, a
qual, sem exceção, inclui a toda a descendência de Adão sob o pecado [Gl 3.22].
Com efeito, esta dificuldade facilmente é resolvida pela antítese que se lê em
Paulo: “Assim como por um só homem entrou o pecado, e pelo pecado de um só, a
morte, assim pela justiça de um homem abundou a graça” [Rm 5.12, 15, 18]. A que
corresponde também outra: “O primeiro Adão era da terra, um homem terreno e
animal; o segundo Adão era do céu, um homem celestial” [1Co 15.47]. E assim, em
outro lugar [Rm 8.34], ensinando que Cristo foi enviado em semelhança da carne
de pecado para que satisfizesse à lei, o mesmo Apóstolo o distingue
expressamente da condição geral da humanidade, para que seja verdadeiro homem,
sem imperfeição e corrupção. Mas, vociferam puerilmente que, se Cristo é isento
de toda mancha, e pela secreta operação do Espírito foi gerado da semente de
Maria, logo a semente da mulher não é impura, mas somente a do homem. Ora,
tampouco fazemos a Cristo isento de toda mancha só porque fora gerado da mãe
sem o concurso do homem, mas porque foi santificado pelo Espírito, para que a
geração fosse pura e íntegra, como deveria ter sido antes da queda de Adão. E que isto
permaneça absolutamente estabelecido: sempre que a Escritura nos chama a
atenção acerca da pureza de Cristo, menciona-se sua verdadeira natureza de
homem, porquanto seria supérfluo dizer que Deus é puro. Também a santificação
de que João fala no capítulo 17 do Evangelho não teria lugar em sua natureza
divina. Além disso, posto que nenhum contágio tenha atingido a Cristo,
imagina-se que a semente de Adão seja dupla, porque em si mesma a geração do
homem não é imunda nem depravada, mas o é acidentalmente, por efeito da queda.
À vista disso, não surpreende se Cristo, por quem deveria ser restaurada a
integridade, tenha sido isento da corrupção geral. Também, o que nos lançam em
rosto como sendo absurdo, a saber, se a Palavra de Deus vestiu a carne, logo
foi ela confinada ao cárcere estrito de um corpo terreno, é puro descaramento,
pois embora a essência infinita do Verbo se unisse com a natureza de um homem
em uma pessoa única, no entanto não imaginamos haver qualquer confinamento.
Ora, de modo maravihoso, do céu desceu o Filho de Deus, e no entanto ele não
deixou o céu; de modo maravilhoso, quis sofrer a gestação no útero da Virgem,
andar pela terra e pender na cruz, para que sempre enchesse o mundo, assim como
desde o início.
João Calvino