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segunda-feira, 13 de agosto de 2018

CRISTO, O FILHO DE DEUS DESDE A ETERNIDADE, IMPROCEDÊNCIA DA TESE DE SERVETO


Com efeito, também em nosso tempo surgiu um monstro não menos pernicioso, Miguel Serveto, que em lugar do Filho de Deus supôs uma ficção conflacionada da essência de Deus, de espírito, de carne e de três elementos não criados. E, na verdade, nega ele, em primeiro lugar, que Cristo seja o Filho de Deus em outro aspecto, senão no sentido em que foi gerado do Espírito Santo no ventre da Virgem. Sua astúcia tende a que, destruída a distinção das duas naturezas, Cristo fica reduzido a uma espécie de mescla e de composição feita de Deus e de homem, e que, todavia, não é tido por Deus nem por homem. Pois, no pleno desenvolvimento de sua tese, Serveto propende a isto: que antes de Cristo haver-se manifestado na carne, havia em Deus apenas figuras penumbrosas, das quais então, finalmente, se fez patente a verdade ou efeito, quando aquela Palavra, que fora destinada a esta honra, começou realmente a ser o Filho de Deus. E de fato confessamos que o Mediador, que nasceu da Virgem, é propriamente o Filho de Deus. Nem, com efeito, Cristo homem seria o espelho da inestimável graça de Deus, a não ser que lhe fosse conferida esta dignidade: de ser e de chamar-se o Unigênito Filho de Deus. Contudo, a todo tempo permanece firme a definição da Igreja: que Cristo é contado por Filho de Deus, porquanto a Palavra gerada do Pai, antes dos séculos, assumiu a natureza humana mediante uma união hipostática. Ora, os antigos chamaram de união hipostática aquela que é constituída de duas naturezas numa só pessoa, expressão esta que fora inventada para refutar o delírio de Nestório, porquanto imaginava ele que o Filho de Deus de tal forma habitara na carne, que ele mesmo não era homem. Serveto nos calunia dizendo que fazemos duplo o Filho de Deus, quando dizemos que a Palavra eterna já era o Filho de Deus antes que se vestisse da carne, como se disséssemos algo mais, além de haver ele se manifestado na carne. Ora, embora fosse Deus antes de ser homem, não se segue que daí começou a ser um novo deus.243 Tampouco é mais absurdo nossa afirmação de que o Filho de Deus se manifestou na carne, embora com respeito à sua geração eterna ele sempre foi Filho.244 Isto sublinham as palavras do Anjo a Maria: “O ente santo que haverá de nascer de ti chamar-se-á o Filho de Deus” [Lc 1.35], como se estivesse a dizer que haveria de ser célebre e conhecido por toda parte o nome de Filho, o qual sob a lei tinha sido mais obscuro. Ao que se afina esta afirmação de Paulo: “porque, através de Cristo, agora somos filhos de Deus, livremente e com confiança, podemos clamar: Abba, Pai” [Rm 8.14, 15; Gl 4.6, 7]. Não foram, porventura, também os santos patriarcas outrora tidos entre os filhos de Deus? Até pelo contrário, apoiados neste direito, invocaram a Deus como Pai. Entretanto, visto que desde quando o Unigênito Filho de Deus foi introduzido no mundo, mais claramente conhecida se fez a paternidade celeste, Paulo como que prescreve este privilégio ao reino de Cristo. Contudo, deve sustentar-se isto constantemente: que Deus jamais foi Pai, quer de anjos, quer de homens, senão em relação ao Filho Unigênito; e que, particularmente os homens, a quem a própria iniqüidade os faz abomináveis a Deus, são filhos por adoção gratuita, porque ele o é por natureza. Tampouco há razão para Serveto vociferar, dizendo que isso depende de uma filiação que Deus decretara de si, porquanto aqui não se trata de figuras, da maneira em que a expiação foi representada no sangue de animais, mas, uma vez que não teriam podido ser filhos de Deus de fato, a não ser que no Cabeça a adoção lhes estivesse fundada, carece de razão subtrair à Cabeça o que foi comum aos membros. Vou além. A despeito de que aos anjos a Escritura chame de filhos de Deus [Sl 82.6], dos quais a tão grande dignidade não dependia da redenção vindoura, não obstante é necessário que Cristo se lhes sobreleve em ordem, o qual o Pai lhes predispõe. De novo o repetirei sucintamente, e o mesmo acrescentarei com relação ao gênero humano. Uma vez que, desde a origem primeva, tanto anjos quanto homens foram criados nesta condição, que para ambos Deus fosse o Pai comum, se é verdadeira essa declaração de Paulo, Cristo sempre foi o Cabeça e o primogênito de toda criação, para que em todas as coisas tivesse ele a primazia, a mim me parece concluir com acerto que Cristo foi o Filho de Deus igualmente antes da criação do mundo.

João Calvino