E se os leitores a aplicarem inteligentemente, esta
observação haverá de ser não de uso reduzido para resolver numerosíssimas
dificuldades. Pois é de admirar como expressões desse teor têm aturdido aos
incultos, e até mesmo a alguns que não são de todo indoutos, quando vêem
expressões como essas sendo atribuídas a Cristo, não sendo nem bastante
próprias à sua divindade, nem à sua humanidade. Isso só porque não atentam para
o fato de que convémà sua pessoa, na qual se manifestou como Deus e homem, e ao
seu ofício de Mediador. E deve simplesmente considerarse quão esplendidamente
se harmonizam entre si, uma por uma, contanto que consideremos tais mistérios
com a sobriedade e reverência que bem merecem. Entretanto, para os espíritos
dementes e frenéticos nada há que não lancem em confusão! Apegam-se aos
atributos da humanidade para alijar a divindade; apegamse, por outro lado, aos
atributos da divindade para alijar a humanidade; apegam-se aos atributos que,
na realidade, tão interligadamente foram referidos acerca de ambas essas
naturezas, os quais não convêm a nenhuma das duas separadamente, para alijar a
ambas. Não obstante, o que tudo isso é senão contender que Cristo não é homem,
já que é Deus; não é Deus, já que é homem; não é nem homem, nem Deus, já que é,
a um só tempo, tanto homem quanto Deus? Portanto, uma vez que ele é Deus e
homem, constante de duas naturezas unidas, todavia não fundidas, concluímos ser
Cristo nosso Senhor e verdadeiro Filho de Deus, até mesmo em relação à
humanidade, se bem que não em razão da humanidade. Portanto, para longe de nós
o erro de Nestório, o qual, querendo antes separar que distinguir as duas
naturezas, engendrava assim um duplo Cristo, quando vemos a Escritura bradar em
contrário, com voz clara, onde não só se aplica o título de Filho de Deus
Àquele que é nascido da Virgem [Lc 1.32], mas também a própria Virgem é chamada
mãe de nosso Senhor [Lc 1.43]. Devemos precaver-nos também da insânia
eutiquiana, para que, enquanto queremos salientar a unidade da pessoa, não
destruamos a uma e à outra natureza. Ora, já citamos tantos testemunhos nos
quais a divindade se distingue da humanidade; e tantos outros, por toda parte
subsistem, que podem tapar a boca até mesmo aos mais contenciosos. E daqui a
pouco anexarei alguns testemunhos a mais, que melhor desmantelem essa ficção.
Para o momento, nos será suficiente uma passagem, a saber: Cristo não teria
denominado seu corpo de templo [Jo 2.19], a não ser que nele habitasse
distintamente a divindade. Por isso, como Nestório fora merecidamente condenado
no Sínodo de Éfeso, assim também, ao depois, Êutiques também o foi nos sínodos
constantinopolitano e calcedôneo, uma vez que não é mais permissível fundir as
duas naturezas em Cristo do que separá-1as.
João Calvino