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segunda-feira, 13 de agosto de 2018

A DOUTRINA ILUSÓRIA DE OSIANDRO DISCUTIDA E REFUTADA PORMENORIZADAMENTE


Portanto, não há por que tema Osiandro que, a não ser que Deus tivesse na mente, antes da queda, um decreto fixo e imutável quanto a ter o Filho de encarnarse, Deus possa ser apanhado como a faltar com a verdade. Porque, ainda quando Adão não houvesse caído, nem por isso teria deixado de ser semelhante a Deus, como o são os anjos; e, contudo, não teria sido necessário que o Filho de Deus viesse a fazer-se ou homem ou anjo. Além disso, debalde temeu Osiandro este absurdo: a não ser que, pelo imutável desígnio de Deus, fosse determinado antes de o homem ser criado que Cristo haveria de nascer, não como o Redentor, mas, antes, como o Primeiro Homem, decairia ele de sua prerrogativa, uma vez que já não nasceria senão por uma contingência, a saber, para que restaurasse o gênero humano perdido, donde se deduz que Cristo, portanto, foi criado à imagem de Adão. Ora, por que se espantaria ele com o que a Escritura tão francamente ensina: que Cristo em tudo foi feito semelhante a nós, exceto no pecado? [Hb 4.15]. Donde também, em sua genealogia, Lucas não hesita em contá-lo como filho de Adão [Lc 3.38].
Desejaria, ainda, saber por que é Cristo chamado por Paulo [1Co 15.45, 47] “o Segundo Adão”, senão porque lhe foi destinada a condição humana para que aos descendentes de Adão soerguesse da ruína? Ora, se Cristo precedeu à criação nessa ordem eventuacional, deveria então ter sido chamado “o Primeiro Adão”. Osiandro afirma, com toda segurança, que, porquanto Cristo era pré-conhecido na mente de Deus como homem, então os homens foram formados em conformidade com esse modelo. Paulo, entretanto, chamando-o “o Segundo Adão”, colocou a queda como intermédia entre o estado original do homem e a restauração que conseguimos através de Cristo, de que procede a necessidade de restaurar-lhe a natureza à condição original. Donde se segue que o Filho de Deus teve essa mesma como a causa de nascer e para que se fizesse homem. Enquanto isso, Osiandro arrazoa mal e de forma insípida que, por todo o tempo em que fosse mantido íntegro, haver Adão de ser a imagem de si próprio, não de Cristo. Respondo, em contraposição, que, mesmo que o Filho de Deus jamais tivesse se revestido de carne, a imagem de Deus, não obstante, lhe fulgia tanto no corpo quanto na alma, imagem em cuja efulgência sempre se fez patente que Cristo é realmente o Cabeça e tem a primazia em todas as coisas. E assim se dissipa a fútil sutileza que Osiandro ventila, a saber, que os anjos seriam destituídos desta Cabeça, se Deus não tivesse o propósito de vestir de carne a seu Filho, mesmo à parte da culpa de Adão. Ora, Osiandro sustenta, com extrema inconsistência, o que ninguém de são juízo concederia: que a Cristo não competiu o primado entre os anjos, de sorte que desfrutam dele como príncipe, a não ser até onde ele é homem. Com efeito, das palavras de Paulo se infere facilmente, primeiro que, até onde ele é a eterna Palavra de Deus, é “o primogênito de toda criação” [Cl 1.15], não porque fosse criado ou deva ser contado entre as criaturas, mas porque o estado íntegro do mundo, que foi desde o início adornado de suprema beleza, não teve outro princípio senão a Cristo; segundo, até onde se fez homem, ele é “o primogênito dentre os mortos” [Cl 1.18]. Ora, o Apóstolo propõe que é preciso considerar numa só e breve passagem [Cl 1.16-18] outro dentre estes dois pontos: todas as coisas foram criadas por instrumentalidade do Filho, para que ele domine sobre os anjos; e foi feito homem, para que começasse a ser nosso Redentor. Da mesma inconsistência é o que Osiandro diz, a saber, que a não ser que fosse ele homem, os homens haveriam de necessitar de Cristo como seu Rei. Como se, aliás, o reino de Deus não pudesse subsistir se, embora não revestido da carne humana, congregados anjos e homens na comunhão de sua glória e vida celestiais, o próprio Filho eterno de Deus sustentasse o primado! Mas, Osiandro sempre se entrega a alucinações, ou para si cria ilusões, neste falso princípio de que a Igreja haveria de ser avke,falon [ak$phal(n – acéfala; sem cabeça], se Cristo não tivesse se manifestado na carne. Como se, na verdade, assim como os anjos fruíam desta Cabeça, não tenha ele, no entanto, podido governar os homens por seu divino poder, e pelo misterioso poder de seu Espírito animá-los e assisti-los como seu corpo, até que, congregados no céu, desfrutassem com os anjos da mesma vida. As trivialidades que tenho até aqui refutado, Osiandro as considera os mais seguros oráculos, de tal sorte que, inebriado do dulçor de suas próprias especulações, costuma entoar seus ridículos peãs acerca de nada! Em seguida, porém, diz ele apresentar um argumento muito mais sólido, isto é, a profecia de Adão, que, contemplando sua consorte, disse: “Esta agora é osso de meus ossos e carne de minha carne” [Gn 2.23]. Mas, donde prova isso ser uma profecia? Certamente, porque em Mateus [19.5, 6] Cristo atribui a mesma expressão a Deus. Como se, de fato, tudo quanto Deus falou através dos homens contenha algum vaticínio! Busque Osiandro vaticínios em cada preceito da lei, que, evidentemente, têm sua procedência em Deus como seu autor. Acrescenta que, apegando-se ao sentido literal, Cristo teria sido rude e terreno. Pois não está ele falando acerca da união mística com que adornou a Igreja, mas simplesmente no que respeita à fidelidade conjugal. Por esta causa, ensina que Deus declarou que o homem e a esposa haverão de ser uma só carne, para que ninguém tente violar, pelo divórcio, esse vínculo indissolúvel. Se esta simplicidade não agrada a Osiandro, repreenda ele a Cristo, visto que não conduziu os discípulos a um mistério, com que interpretar mais sutilmente a linguagem do Pai. Com efeito, nem mesmo Paulo lhe sufraga o desvairamento, o qual, onde disse que somos carne da carne de Cristo [Ef 5.30], logo em seguida acrescenta ser este um grande mistério [Ef 5.32]. Pois tampouco pretendeu Paulo indicar em que sentido Adão proferiu isso, mas ressaltar, sob a figura e semelhança do matrimônio, a sagrada união que nos faz um com Cristo. E isto o expressam as próprias palavras. Pois, advertindo de que está falando isto acerca de Cristo e da Igreja, à guisa de correção, da relação do matrimônio distingue a união espiritual de Cristo e da Igreja. Portanto, facilmente se desvanece esta futilidade. Além disso, tampouco julgo ser-me necessário discutir mais a fundo semelhantes futilidades, porquanto desta brevíssima refutação se depreenderá a vacuidade de todas elas. Para nutrir satisfatoriamente aos filhos de Deus, entretanto, esta sobriedade será mais que suficiente: quando veio a plenitude dos tempos, o Filho de Deus foi enviado, nascido de mulher, nascido sob a lei, para que redimisse àqueles que estavam debaixo da lei [Gl 4.4, 5].


João Calvino