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segunda-feira, 13 de agosto de 2018

CONSIDERAÇÕES FINAIS NA REFUTAÇÃO DAS TESES DE SERVETO


Mas, embora Serveto tenha amontoado horrendos despautérios, aos quais, talvez, outros não subscrevessem, contudo todos quantos não reconhecem o Filho de Deus, senão na carne, se os acossas mais de perto, notarás deles ser isto concedido não por outra razão, senão por ele ter sido concebido do Espírito Santo no ventre da Virgem, da mesma forma que tartamudearam outrora os maniqueus, dizendo que o homem tem a alma por derivação de Deus, porquanto liam que “Deus soprara em Adão o fôlego da vida” [Gn 2.7]. Com efeito, eles se agarram tão obstinadamente ao termo Filho, que nenhuma diferença deixam entre as duas naturezas; pelo contrário, vociferam confusamente dizendo que Cristo homem é o Filho de Deus porque foi gerado de Deus no tocante à sua natureza humana. Extingue-se, assim, a eterna geração da Sabedoria que Salomão proclama [Pv 8.22, 23], e nenhuma consideração se terá da divindade no Mediador, ou se presumirá um espectro em lugar do homem. Seria certamente útil refutar as cogitações falaciosas mais crassas de Serveto, com as quais a si mesmo se fascinou e a outros mais, para que, avisados por este exemplo, os leitores piedosos se contenham nos limites da sobriedade e do comedimento. Julgo, entretanto, que seria supérfluo, uma vez que fiz isto em um livro especial. A síntese da matéria se reduz a isto: para Serveto, o Filho de Deus foi inicialmente uma idéia, e então foi preordenado como o homem que seria a imagem essencial de Deus. Tampouco reconhece ele outra Palavra de Deus, senão no esplendor externo. Entende Serveto que esta foi a geração de Cristo: que, inicialmente, foi engendrada em Deus a vontade de gerar o Filho, a qual se lhe estendeu também, em ato, à própria criação. Enquanto isso, ele mistura o Espírito com a própria Palavra, porquanto a seu ver Deus administrou o Verbo invisível e o Espírito, respectivamente, na carne e na alma. Enfim, em Serveto, a representação figurativa de Cristo assume seu lugar na geração. Mas, aquele que foi então, em expressão, o Filho envolto em sombra, esse diz ele ter sido finalmente gerado pela Palavra, à qual atribui funções seminais. Donde se seguirá que não menos filhos de Deus são os porcos e os cães, já que foram criados da semente original do Verbo de Deus. Mas, embora forje ele a Cristo de três elementos não criados, para que seja gerado da essência de Deus, contudo assim o imagina como sendo o primogênito entre as criaturas, no qual, conforme seu grau, as próprias pedras têm a mesma divindade essencial. Entretanto, para que não pareça despojar a Cristo de sua deidade, Serveto afirma que sua carne é o`moou,sion [h(m(oúsi(n – da mesma substância] para Deus, e que a Palavra se fez homem pela conversão da carne em Deus. Portanto, embora não possa ele conceber a Cristo como o Filho de Deus, a não ser que sua carne tenha provindo da essência de Deus, e tenha se convertido na divindade, reduz a nada a eterna hipóstase da Palavra e nos arrebata o Filho de Davi, que fora prometido como Redentor. A verdade é que ele repete isto com muita freqüência, a saber: que o Filho foi gerado de Deus em sua presciência e predestinação; e que ele, porém, finalmente foi feito homem daquela matéria que, no início, fulgia em Deus nos três elementos não criados, a qual, depois, se manifestou na primeira luz do mundo [Gn 1.3], na nuvem e na coluna de fogo [Ex 13.21].
Mas, na verdade, demasiado prolixo seria referir quão vergonhosamente o próprio Serveto reflete consigo, a cada passo. Deste sumário, concluirão os leitores assisados que, com os engenhosos rodeios de um cão impuro, foi de todo extinguida a esperança de salvação. Daí, se a carne fosse a própria divindade, ela deixaria de ser seu templo. Daí, só pode ser nosso Redentor Aquele que, gerado da semente de Abraão e de Davi, se fez verdadeiramente homem segundo a carne. Com efeito, Serveto insiste indevidamente nas palavras de João: “A Palavra se fez carne” [Jo 1.14], porque, assim como eles se contrapõem ao erro de Nestório, assim também longe estão de corroborar esta ímpia invenção cujo autor foi Êutiques, visto que outro propósito não teve o evangelista senão afirmar a unidade da pessoa nas duas naturezas.

João Calvino