Mas, embora Serveto tenha amontoado horrendos
despautérios, aos quais, talvez, outros não subscrevessem, contudo todos
quantos não reconhecem o Filho de Deus, senão na carne, se os acossas mais de
perto, notarás deles ser isto concedido não por outra razão, senão por ele ter sido concebido
do Espírito Santo no ventre da Virgem, da mesma forma que tartamudearam outrora
os maniqueus, dizendo que o homem tem a alma por derivação de Deus, porquanto
liam que “Deus soprara em Adão o fôlego da vida” [Gn 2.7]. Com efeito, eles se
agarram tão obstinadamente ao termo Filho, que nenhuma diferença deixam entre
as duas naturezas; pelo contrário, vociferam confusamente dizendo que Cristo
homem é o Filho de Deus porque foi gerado de Deus no tocante à sua natureza
humana. Extingue-se, assim, a eterna geração da Sabedoria que Salomão proclama
[Pv 8.22, 23], e nenhuma consideração se terá da divindade no Mediador, ou se
presumirá um espectro em lugar do homem. Seria certamente útil refutar as
cogitações falaciosas mais crassas de Serveto, com as quais a si mesmo se
fascinou e a outros mais, para que, avisados por este exemplo, os leitores
piedosos se contenham nos limites da sobriedade e do comedimento. Julgo,
entretanto, que seria supérfluo, uma vez que fiz isto em um livro especial. A
síntese da matéria se reduz a isto: para Serveto, o Filho de Deus foi
inicialmente uma idéia, e então foi preordenado como o homem que seria a imagem
essencial de Deus. Tampouco reconhece ele outra Palavra de Deus, senão no
esplendor externo. Entende Serveto que esta foi a geração de Cristo: que,
inicialmente, foi engendrada em Deus a vontade de gerar o Filho, a qual se lhe
estendeu também, em ato, à própria criação. Enquanto isso, ele mistura o
Espírito com a própria Palavra, porquanto a seu ver Deus administrou o Verbo
invisível e o Espírito, respectivamente, na carne e na alma. Enfim, em Serveto,
a representação figurativa de Cristo assume seu lugar na geração. Mas, aquele
que foi então, em expressão, o Filho envolto em sombra, esse diz ele ter sido
finalmente gerado pela Palavra, à qual atribui funções seminais. Donde se
seguirá que não menos filhos de Deus são os porcos e os cães, já que foram
criados da semente original do Verbo de Deus. Mas, embora forje ele a Cristo de
três elementos não criados, para que seja gerado da essência de Deus, contudo
assim o imagina como sendo o primogênito entre as criaturas, no qual, conforme
seu grau, as próprias pedras têm a mesma divindade essencial. Entretanto, para
que não pareça despojar a Cristo de sua deidade, Serveto afirma que sua carne é
o`moou,sion [h(m(oúsi(n – da mesma substância] para Deus, e que a Palavra se
fez homem pela conversão da carne em Deus. Portanto, embora não possa ele
conceber a Cristo como o Filho de Deus, a não ser que sua carne tenha provindo
da essência de Deus, e tenha se convertido na divindade, reduz a nada a eterna
hipóstase da Palavra e nos arrebata o Filho de Davi, que fora prometido como
Redentor. A verdade é que ele repete isto com muita freqüência, a saber: que o
Filho foi gerado de Deus em sua presciência e predestinação; e que ele, porém,
finalmente foi feito homem daquela matéria que, no início, fulgia em Deus nos
três elementos não criados, a qual, depois, se manifestou na primeira luz do
mundo [Gn 1.3], na nuvem e na coluna de fogo [Ex 13.21].
Mas, na verdade, demasiado prolixo seria referir quão
vergonhosamente o próprio Serveto reflete consigo, a cada passo. Deste sumário,
concluirão os leitores assisados que, com os engenhosos rodeios de um cão
impuro, foi de todo extinguida a esperança de salvação. Daí, se a carne fosse a
própria divindade, ela deixaria de ser seu templo. Daí, só pode ser nosso
Redentor Aquele que, gerado da semente de Abraão e de Davi, se fez
verdadeiramente homem segundo a carne. Com efeito, Serveto insiste
indevidamente nas palavras de João: “A Palavra se fez carne” [Jo 1.14], porque,
assim como eles se contrapõem ao erro de Nestório, assim também longe estão de
corroborar esta ímpia invenção cujo autor foi Êutiques, visto que outro
propósito não teve o evangelista senão afirmar a unidade da pessoa nas duas
naturezas.
João Calvino