Mas, em referência à descida de Cristo às regiões
infernais, deixada de parte a consideração do Credo, é preciso buscar uma
explicação mais certa. E a Palavra de Deus nos é patenteada, não apenas como
santa e pia, mas também plena de maravilhosa consolação. Nada se teria passado,
se Cristo tivesse experimentado apenas a morte corporal. Pelo contrário, era ao
mesmo tempo necessário que ele sentisse a severidade da vingança divina, para
que não só se visse sujeito à ira, como também nele o justo juízo fosse
satisfeito. Ademais, ele se viu obrigado a lutar, por assim dizer, de mãos
travadas,267 com as hostes dos infernos e com o horror da morte eterna. Pouco
antes referimos do Profeta que “foi imposto sobre ele o castigo de nossa paz”;
que “ele foi ferido” pelo Pai “por causa de nossas transgressões”; que “foi
esmagado por causa de nossas enfermidades” [Is 53.5], palavras com as quais
significa ter-se submetido por fiador, avalista e até mesmo como culpado, em
lugar dos transgressores, para que pagasse e saldasse todas as penas que deles
se deveriam exigir,
excetuado apenas isto: que “não podia ser retido pelos tormentos da morte” [At
2.24]. Portanto, nada há de surpreendente dizer-se que ele desceu às regiões
infernais, uma vez que tenha ele sofrido esta morte infligida aos pecadores por
um Deus irado. É por demais frívola, e até mesmo ridícula, a objeção daqueles
que dizem que desse modo se transtorna a ordem, porquanto é absurdo que ao
sepultamento se ponha o que o precedeu, pois no Credo, onde foram expostas as
coisas que Cristo sofreu à vista dos homens, anexa-se apropriadamente aquele
julgamento invisível e incompreensível que manteve diante de Deus, para que
saibamos não só que o corpo de Cristo foi entregue por preço de redenção, mas
houve também um preço maior e mais excelente, a saber, que ele sofreu na alma
os terríveis tormentos de um homem condenado e perdido.
João Calvino