Com efeito, dirá alguém: enfaticamente outra é a experiência dos fiéis que, ao
reconhecerem a graça de Deus para consigo, não só são tentados por inquietude,
que freqüentemente os acossa, mas até amiúde tremem de gravíssimos temores, tão
grande é a veemência das tentações desenfreadas para abalar-lhes a mente; o que
não parece coadunar-se muito com essa certeza de fé! Conseqüentemente, impõese-nos
resolver esta questão, se queremos que a doutrina supradiscutida se mantenha
firme.
Nós, de fato, enquanto ensinamos que a fé deve ser certa e segura, não imaginamos
alguma certeza que jamais possa ser tangida por alguma dúvida, nem uma
segurança que não possa ser atingida por alguma inquietude; senão que, antes, dizemos
que os fiéis têmperpétuo conflito com sua própria desconfiança. Tão longe está
de que coloquemos sua consciência em algum plácido repouso, o qual não seja absolutamente importunado por nenhuma perturbação! Todavia, por outro lado, de
qualquer maneira que sejam afligidos, negamos que decaiam e se apartem daquela
segura confiança que conceberam da misericórdia de Deus.
Nenhum exemplo de fé é mais insigne ou mais memorável do que aquele que a
Escritura propõe em Davi, especialmente se visualizarmos todo o curso de sua vida.
Contudo, ele mesmo com freqüência se queixa de estar mui longe de desfrutar perenemente
da paz de espírito. Bastará citar alguns de seus numerosos testemunhos.
Enquanto censura os conturbados sentimentos de sua alma, que outra coisa censura
senão sua própria incredulidade? “Por que te agitas”, diz ele, “ó minha alma, e por
que te perturbas dentro de mim? Espera em Deus” [Sl 42.5, 11; 43.5]. Certamente
que aquela consternação era evidente sinal de desconfiança, como se julgasse abandonado
por Deus. Confissão ainda mais ampla se lê em outro lugar: “Eu disse em
minha precipitação: lançado fui da vista de teus olhos” [Sl 31.22]. Em outro lugar
também contende consigo mesmo em ansiosa e angustiada perplexidade; na verdade,
formula uma indagação acerca da própria natureza de Deus: “Porventura esqueceu-se
Deus de ser misericordioso? Porventura rejeitará ele para sempre?” [Sl 77.7,
9]. Mais duro é o que segue: “E eu disse: Isto constitui minha enfermidade; mas eu
me lembrei dos anos da destra do Altíssimo” [Sl 77.10]. Ora, como que desesperado,
a si mesmo se condena à morte; e não apenas se confessa sacudido de dúvida,
mas, como se estivesse sucumbido no conflito, até mesmo imagina que nada mais
lhe resta, porque pressupõe que Deus o havia abandonado, e lhe voltara a mão para
destruí-lo, a qual outrora lhe era para auxílio. Por isso, não sem causa, ele exorta sua
alma a que retorne a sua quietude [Sl 116.7], porque havia experimentado o que era
ser arrojado por entre ondas turbulentas.
E no entanto, o que é admirável, por entre esses abalos a fé sustenta os corações
dos piedosos; e na verdade alcança o viço da palmeira [Sl 92.12], de sorte a enfrentar
a todos e quaisquer incômodos e se eleva para o alto; assim como Davi, quando
poderia parecer esmagado, ainda que incriminando a si mesmo, não desistiu de
buscar a Deus. Aquele que, deveras, lutando com a fraqueza pessoal, em suas ansiedades
porfia para com a fé, em larga medida já é vencedor. O que é lícito concluir
desta citação e similares: “Espera no Senhor. Sê forte; ele te fortalecerá o coração.
Espera no Senhor” [Sl 27.14]. Davi a si mesmo se acusa de desânimo e, repetindo o
mesmo duas vezes, se confessa seguidamente sujeito a muitos sobressaltos. Entrementes,
não apenas se desagrada a si próprio nessas falhas, mas aspira e se esforça
em corrigi-las.
Por exemplo, caso se compare com o rei Acaz, logo se verá perfeitamente a
diferença entre ambos. Isaías é enviado a levar remédio à ansiedade do rei ímpio e
hipócrita. Ele lhe fala com estas palavras: “Estejas em guarda e aquieta-te; não te
atemorizes” etc. [Is 7.4]. Que faz ele ao ouvir isto? Como fora dito antes, que o coração lhe foi abalado como as árvores da floresta são sacudidas pelo vento [Is
7.2], embora ouvisse a promessa, não cessou de apavorar-se. Portanto, esta é a mercê
e castigo próprios da infidelidade: estremecer de tal forma, que aquele que não
abre para si a porta, pela fé, na tentação se afasta de Deus; em contraposição, porém,
os fiéis, a quem vultoso volume de tentações encurva e quase esmaga, delas se
alteiam constantemente, ainda que não sem embaraço e dificuldade. E já que são
cônscios da própria fraqueza de espírito, oram com o Profeta: “Não retires totalmente
de minha boca a palavra da verdade” [Sl 119.43]. Com essas palavras somos
ensinados que eles amiúde emudecem, como se sua fé fosse prostrada, os quais, no
entanto, não decaem nem viram as costas; ao contrário, prosseguem sua luta, e orando
espicaçam sua letargia, para que, ao menos, por sua própria complacência não se
entreguem à preguiça.
João Calvino
Escola Bíblica Conhecedores da verdade - O objetivo deste blog e levar você a conhecer a verdade que liberta de todo o Engano. Nesses últimos tempos, muito se tem ouvido falar do evangelho de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, porém de maneira distorcida e muitas vezes pervertida, com heresias disfarçada etc. “ ...e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.” João 8.32