Ao afirmar isso, não é meu propósito aprovar a perniciosa filosofia ou fantasia
que sustentam hoje alguns semipapistas. Ora, visto que não lhes é possível defender
essa grosseira dúvida que tem sido ensinada nas escolas, ocultam-se em outra invencionice,
de sorte a tornar a confiança mesclada com a incredulidade. Admitem
que, enquanto temos nossos olhos postos em Cristo, encontramos nele motivo suficiente para esperar; porque, não obstante, sendo nós sempre indignos de todas essas
benesses que em Cristo se nos oferecem, querem que flutuemos e vacilemos à vista
de nossa indignidade. Em suma, de tal modo colocam a consciência entre a esperança
e o medo, que este oscila para cá e para lá, mediante intermitências e vacilações.
Aliás, a esperança e o medo de tal modo relacionam-se entre si que, em despontando
aquela, este é reprimido; em ressurgindo este, aquela de novo tomba por terra. E
assim Satanás, quando já vê que agora nada valem aquelas abertas maquinações
com que costumara anteriormente enfraquecer a certeza da fé, tenta miná-la através
de artifícios indiretos.
De que natureza, porém, será essa confiança que, freqüentemente, cederá ao
desespero? Se contemplas a Cristo, dizem eles, infalível te é a salvação; se te volves
a ti mesmo, infalível é a condenação. Logo, necessário se faz que alternadamente
reine em teu espírito a desconfiança e a boa esperança. Como se, de fato, devêssemos
pensar de Cristo como estando distante e não antes a habitar em nós! Ora, uma
vez que dele aguardamos a salvação, não porque nos pareça distante, mas porque a
nós, enxertados em seu corpo, não só nos faz participantes de todos os seus benefícios,
mas também de si próprio. Conseqüentemente, assim lhes reverto este argumento:
Se a ti mesmo contemplas, certa é a condenação; mas, uma vez que Cristo de
tal modo te comunicou todos os seus benefícios, que todas as suas coisas são tuas,
que te faz membro de seu corpo e, melhor, um com ele, sua justiça cobre teus pecados,
sua salvação abole tua condenação. Ele próprio, com sua dignidade, se interpõe
para que tua indignidade não se exiba à vista de Deus.
E isso é tão certo que de modo algum devemos apartar Cristo de nós, nem nós
dele, mas manter solidamente esta comunhão pela qual intimamente nos uniu a si.
Desta forma nos ensina o Apóstolo: “O corpo, na verdade, está morto por causa do
pecado, mas o Espírito de Cristo, que habita em vós, é vida por causa da justiça”
[Rm 8.10]. Segundo a trivialidade desses semipapistas, o Apóstolo deveria dizer:
“Cristo, na verdade, tem vida em si, mas vós, visto que sois pecadores, permaneceis
sujeitos à morte e à condenação.” Mas realmente ele fala de maneira bem outra,
pois ensina que esta condenação que em nós mesmos merecemos foi tragada pela
salvação de Cristo; e, para confirmar isto, usa daquela razão que referi: que Cristo
não está fora de nós, mas habita em nós; não só se nos apega por um laço indiviso de
associação, mas, mediante certa comunhão maravilhosa, dia a dia, mais e mais se
une em um só corpo conosco, até que se faça conosco inteiramente um.
Entretanto, tampouco renego o que disse pouco antes, ou, seja, que amiúde ocorrem
certas interrupções da fé segundo sua fraqueza, quando ela oscila para cá ou
para lá por entre violentos ataques. Assim, no denso nevoeiro das tentações, a luz
lhe é sufocada. Entretanto, não importa o que aconteça, ela nunca deixa de inclinarse
sempre para Deus.
João Calvino