Total de visualizações de página

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

A IRA DE DEUS SUPERADA PELA MISERICÓRDIA POLARIZADA EM CRISTO


Mas, antes que avancemos mais longe, impõe-se-nos ver, de passagem, como é possível que Deus, que vem diante de nós em sua misericórdia, sendo-nos inimigo até que se reconciliou conosco por intermédio de Cristo. Ora, como nos teria ele dado a singular dádiva de seu amor no Filho Unigênito, a não ser que já antes nos tivesse envolvido em seu gracioso favor? Portanto, uma vez que aqui emerge certa aparência de contradição, resolverei esta dificuldade. Desta maneira geralmente fala o Espírito nas Escrituras: “Deus foi inimigo dos homens até que fossem restaurados à graça pela morte de Cristo” [Rm 5.10]; “foram malditos até que lhes fosse expiada a iniqüidade mediante seu sacrifício” [Gl 3.10, 13]; “estiveram separados de Deus até que fossem, através de seu corpo, recebidos em comunhão com ele” [Cl 1.21, 22]. Expressões deste gênero nos foram acomodadas à capacidade para que melhor entendamos quão mísera nos é, e calamitosa, a condição à parte de Cristo. Pois, a não ser que, em termos claros, se dissesse que sobre nós haviam recaído a ira e vingança de Deus e a morte eterna, menos consciência teríamos de quão miseráveis seríamos sem a misericórdia de Deus e menos estimaríamos o benefício de nossa libertação. Por exemplo, quando alguém ouve dizer: “Se no tempo em que eras ainda um pecador, Deus te odiara e te lançara para longe, como havias merecido, horrível perdição te aguardava. Mas, visto que, de sua livre vontade e de seu gracioso favor, te conservou em graça, nem permitiu que fosses dele alienado, assim te livrou desse perigo.” Sensibilizar-te-ás, sem dúvida, e sentirás, em certa medida, quanto deves à misericórdia de Deus. Que ouças, porém, por outro lado, o que a Escritura ensina: o homem foi alienado de Deus pelo pecado, herdeiro da ira, sujeito à maldição da morte eterna, excluído de toda esperança de salvação, alijado de toda bênção de Deus, escravo de Satanás, cativo sob o jugo do pecado, destinado, afinal, a horrível perdição. Mas então Cristo interveio, e intercedendo por ele tomou sobre seus ombros a pena e pagou o que os pecados teriam que pagar pelo justo juízo de Deus que ameaçava a todos os pecadores; que expiou com seu sangue todos os pecados que eram a causa da inimizade entre Deus e os homens; que com esta expiação satisfez o Pai e aplacou sua ira; que ele é o fundamento da paz entre Deus e nós; que ele é o vínculo que nos mantém em seu favor e graça – isto não o moverá com maior intensidade, quanto mais vivo seja o quadro ante nossos olhos da grande miséria da qual o homem se livrou? Em suma, visto que nosso espírito não pode suficiente e sofregamente apreender a vida calcada na misericórdia de Deus, ou mantê-la com a gratidão que convém, salvo se antes abalado e consternado pelo temor da ira de Deus e pelo horror da morte eterna, somos assim instruídos pela sagrada doutrina que, à parte de Cristo, vemos a Deus, em certa medida, como nosso inimigo e sua mão armada para nosso castigo, e somente em Cristo abraçamos sua benevolência e paterno amor.

João Calvino