Mas, antes que avancemos mais longe, impõe-se-nos ver,
de passagem, como é possível que Deus, que vem diante de nós em sua
misericórdia, sendo-nos inimigo até que se reconciliou conosco por intermédio
de Cristo. Ora, como nos teria ele dado a singular dádiva de seu amor no Filho
Unigênito, a não ser que já antes nos tivesse envolvido em seu gracioso favor?
Portanto, uma vez que aqui emerge certa aparência de contradição, resolverei
esta dificuldade. Desta maneira geralmente fala o Espírito nas Escrituras:
“Deus foi inimigo dos homens até que fossem restaurados à graça pela morte de
Cristo” [Rm 5.10]; “foram malditos até que lhes fosse expiada a iniqüidade mediante
seu sacrifício” [Gl 3.10, 13]; “estiveram separados de Deus até que fossem,
através de seu corpo, recebidos em comunhão com ele” [Cl 1.21, 22]. Expressões
deste gênero nos foram acomodadas à capacidade para que melhor entendamos quão
mísera nos é, e calamitosa, a condição à parte de Cristo. Pois, a não ser que,
em termos claros, se dissesse que sobre nós haviam recaído a ira e vingança de
Deus e a morte eterna, menos consciência teríamos de quão miseráveis seríamos
sem a misericórdia de Deus e menos estimaríamos o benefício de nossa
libertação. Por exemplo, quando alguém ouve dizer: “Se no tempo em que eras
ainda um pecador, Deus te odiara e te lançara para longe, como havias merecido,
horrível perdição te aguardava. Mas, visto que, de sua livre vontade e de seu
gracioso favor, te conservou em graça, nem permitiu que fosses dele alienado,
assim te livrou desse perigo.” Sensibilizar-te-ás, sem dúvida, e sentirás, em
certa medida, quanto deves à misericórdia de Deus. Que ouças, porém, por outro
lado, o que a Escritura ensina: o homem foi alienado de Deus pelo pecado,
herdeiro da ira, sujeito à maldição da morte eterna, excluído de toda esperança
de salvação, alijado de toda bênção de Deus, escravo de Satanás, cativo sob o
jugo do pecado, destinado, afinal, a horrível perdição. Mas então Cristo
interveio, e intercedendo por ele tomou sobre seus ombros a pena e pagou o que
os pecados teriam que pagar pelo justo juízo de Deus que ameaçava a todos os
pecadores; que expiou com seu sangue todos os pecados que eram a causa da
inimizade entre Deus e os homens; que com esta expiação satisfez o Pai e
aplacou sua ira; que ele é o fundamento da paz entre Deus e nós; que ele é o
vínculo que nos mantém em seu favor e graça – isto não o moverá com maior
intensidade, quanto mais vivo seja o quadro ante nossos olhos da grande miséria
da qual o homem se livrou? Em suma, visto que nosso espírito não pode
suficiente e sofregamente apreender a vida calcada na misericórdia de Deus, ou
mantê-la com a gratidão que convém, salvo se antes abalado e consternado pelo
temor da ira de Deus e pelo horror da morte eterna, somos assim instruídos pela
sagrada doutrina que, à parte de Cristo, vemos a Deus, em certa medida, como
nosso inimigo e sua mão armada para nosso castigo, e somente em Cristo
abraçamos sua benevolência e paterno amor.
João Calvino