Na verdade, daqui uma vez mais enfeixamos o que foi antes exposto: que a fé
não tem menos necessidade da Palavra que o fruto da raiz viva da árvore, porquanto,
atesta-o Davi, nenhum outro pode esperar em Deus senão aquele que conhece
seu nome [Sl 9.10]. Esse conhecimento, porém, não provém da imaginação de cada
um, mas até onde o próprio Deus é testemunha de sua bondade. Isto confirma-o, em
outro lugar, o mesmo Profeta: “Tua salvação em conformidade com tua palavra” [Sl
119.41]. Igualmente: “Em tua palavra tenho esperado; salva-me [Sl 119.146, 147].
Onde se deve notar, primeiro, a relação da fé com a Palavra; a seguir, a conseqüência
resultante da fé.
Contudo, não estamos com isso excluindo o poder de Deus, em cuja contemplação
a fé há de apoiar-se, se queremos conferir a Deus sua honra. Paulo parece falar
acerca de Abraão de forma fria ou vulgar: que ele creu que Deus, que lhe prometera
uma descendência abençoada, era poderoso para cumprir esta promessa [Rm 4.21].
De igual modo, em outro lugar, em referência a si próprio: “Sei em quem tenho
crido, e estou certo de que é poderoso para guardar meu depósito para aquele dia”
[2Tm 1.12]. Com efeito, se cada um pondera consigo que muitas vezes dúvidas se
insinuam sem cessar em nossa mente, quanto ao poder de Deus, reconhecerá suficientemente
que aqueles que o magnificam, como é ele digno, têm feito não reduzido
progresso na fé. Todos confessaremos que Deus pode tudo quanto quer; quando,
porém, cada mínima tentação nos consterna de medo e nos faz atônitos de horror,
dissose manifesta que não diminuímos o poder de Deus ao qual preferimos às ameaças
de Satanás contra suas promessas.
Esta é a razão por que Isaías, quando quer imprimir no coraçãodo povoa certeza
da salvação, tão magnificamente discorre acerca do imenso poder de Deus. Com
freqüência parece que, onde ele começou a considerar acerca da esperança de perdão
e de reconciliação, muda para outro assunto e vagueia por longos e supérfluos
rodeios, celebrando quão maravilhosamente Deus governa o mecanismo do céu e da
terra, juntamente com toda a ordem da natureza. Contudo, nada aqui há que não
sirva à presente circunstância; porquanto, a não ser que o poder de Deus, pelo qual
tudo pode, se nos anteponha aos olhos, dificilmente nossos ouvidos receberão a
Palavra, ou não a estimarão com o justo valor.
Acrescenta que aqui se lhe assinala o poder eficaz, visto que a piedade, como foi visto em outro lugar, acomoda sempre o poder de Deus ao uso e à necessidade, e põe
diante de si especialmente as obras de Deus mediante as quais ele se atestou ser o
Pai. Daqui essa menção da redenção tão freqüente nas Escrituras de que os israelitas
podiam aprender que Deus, que uma vez por todas lhes fora o autor da salvação,
teria de ser seu eterno guardião. Também, com seu exemplo, Davi nos lembra que os
benefícios que Deus conferiu a cada um em particular valem para a confirmação de
sua fé para o futuro. Com efeito, quando parece haver-nos abandonado, convém que
estendamos mais longe nossos pensamentos, para que seus antigos benefícios nos
levantem o ânimo, como lemos em outro Salmo: “Lembrei-me dos dias antigos,
meditei em todas as suas obras” etc. [Sl 143.5]. Igualmente: “Recordar-me-ei das
obras do Senhor, e de suas maravilhas desde o princípio” [Sl 77.11]. Mas, uma vez
que, à parte da Palavra, evanescente é tudo quanto concebemos do poder de Deus e
de suas obras, afirmamos, não improcedentemente, que nenhuma fé existe até que
Deus a faça resplandecer com o testemunho de sua graça.
Aqui, entretanto, é possível que se suscite uma pergunta: que se deve sentir a
respeito de Sara e de Rebeca, as quais, segundo parece, movidas do zelo da fé,
foram além dos limites da Palavra? Sara, como ardesse pelo desejo de receber a
prole prometida, entregou sua serva ao marido [Gn 16.2]. Que ela tenha pecado de
muitas maneiras, não há como negar-se. Contudo, estou agora abordando esta falha:
que, arrebatada pelo seu zelo, não se conteve dentro dos limites da Palavra de Deus.
No entanto, é certo que esse desejo procedeu de sua fé. Rebeca, notificada por
divino oráculo acerca da eleição de seu filho Jacó, procura-lhe a bênção mediante
depravado ardil, engana a seu marido, testemunha e ministro da graça de Deus,
obriga seu filho a mentir, corrompe por variadas fraudes e imposturas a verdade de
Deus; em suma, ao expor a promessa ao ridículo, quanto está em si, a aniquila.
Contudo, este procedimento não foi vazio de fé, por mais que seja vicioso e digno
de censura, visto que lhe foi necessário sobrepujar muitos óbices, para que tão incisivamente
buscasse o que, sem esperança do beneficio terreno, era abundante de
ingentes dificuldades e perigos. Assim também não privaremos inteiramente de fé
ao santo patriarca Isaque que, avisado pelo mesmo oráculo quanto à honra transferida
ao filho mais moço, entretanto, não deixa de ser propenso para com seu primogênito
Esaú.
Na verdade, estes exemplos ensinam que, freqüentemente, o erro se mescla com
a fé; contudo, de tal maneira que ela, onde é verdadeira, mantenha sempre a preeminência.
Pois, assim como o erro particular de Rebeca não tornou nulo o efeito da
bênção, assim nem impediu que a fé em sua alma imperasse generalizadamente e
fosse o princípio e causa desse proceder. Nisto, entretanto, Rebeca deixou à mostra
quão escorregadia é a inclinação da mente humana tão logo se permite um mínimo
sequer. Mas, ainda que deficiência e fraqueza obscureçam a fé, contudo não a extinguem. Enquanto isso, nos previnem de quão solicitamente nos convenha depender
da boca de Deus, e ao mesmo tempo confirmam o que já ensinamos: que a fé se
dissipa, a não ser que seja sustentada pela Palavra, assim como em seus sinuosos
devaneios teriam se desvanescido as cogitaçõesde Sara, de Isaque e de Rebeca, não
fora que na obediência da Palavra elas fossem retidas pelo freio secreto de Deus.
João Calvino