Mas o que João afirma, que “no amor não há temor, mas o perfeito amor lança
fora o temor, porquanto o temor tem a ver com punição” [1Jo 4.18], em nada destrói
estas postulações. Pois ele está falando do terror da incredulidade, do qual este
temor dos fiéis difere muitíssimo. Ora, tampouco os ímpios temem a Deus só porque
se arreceiem de incorrer-lhe no desagrado; o que ousariam, se deveras o pudessem
impunemente; mas porque sabem estar ele armado do poder de represália, são
sacudidos de pavor ao ouvir falar de sua ira. E também assim temem sua ira, porque
a julgam sobrepairar-lhes ameaçadora, pelo que esperam a cada momento lhes haja
de cair na cabeça.
Os fiéis, porém, como foi dito, não só temem a ofensa mais do que o castigo,
nem são perturbados pelo medo de punição, como se lhes pendesse o castigo, mas
também se tornam mais cautos para que não incorram nele. Assim o Apóstolo, quando
fala aos fiéis: “Não vos enganeis”, diz ele, “porque por esse meio advém a ira de
Deus sobre os filhos da desobediência” [Ef 5.6], não ameaça que sobre eles ela
haverá de descer, mas os adverte a que pensem na ira do Senhor preparada para os
ímpios, por causa dessas impiedades que enumerara, para que não queiram experimentá-la
também eles mesmos.
Todavia, raramente acontece que os réprobos se despertem e se sintam movidos
pelas simples ameaças, senão que, já tardos e embotados por seu endurecimento,
sempre que do céu Deus troveja com palavras, acirram ainda mais sua contumácia.
Mas, tocados por sua mão, queiram ou não, são compelidos a temer. A este temor
chamam geralmente servil e o contrastam ao temor natural e espontâneo que convém
aos filhos. Introduzemoutros, sutilmente, uma espécie intermédia desse temor,
visto que essa disposição servil e compulsória por vezes domina os ânimos de tal
modo que se aproximam deliberadamente ao temor de Deus.
João Calvino