Um tanto mais difícil é o ponto
assinalado por Paulo: “E vós, quando estáveis mortos por vossos delitos e pela
incircuncisão de vossa carne, Deus vos vivificou juntamente com ele,
perdoando-vos todos os delitos e cancelando o título de dívida que nos era
adverso nos decretos, e o removeu do meio, pregando-o na cruz” etc. [Cl 2.13,
14]. Com esta declaração, é como se ele quisesse levar mais adiante a abolição
da lei, de modo a não ter nada a ver com os decretos. Erram, portanto, os que
tomam isto em referência simplesmente à Lei Moral, cuja inexorável severidade,
contudo, interpretam como abolida, e não propriamente a doutrina. Outros,
ponderando mais agudamente as palavras de Paulo, discernem que isto diz
respeito propriamente à Lei Cerimonial, e mostram que em Paulo o termo decreto
significa isto não apenas uma vez. Ora, também aos Efésios assim fala: “Ele é
nossa paz, o qual de ambos fez um, abolindo a lei dos mandamentos situada em
decretos, para que em si mesmo dos dois criasse um novo homem” [Ef 2.14, 15].
Longe de ser ambíguo, aqui se trata das cerimônias, uma vez que as chama um
muro de separação pelo qual os judeus se separavam dos gentios [Ef 2.14].
Portanto, confesso que aqueles primeiros são com justiça criticados por estes
segundos, mas também confesso que a mim me parece que a mente do Apóstolo não é
por estes ainda bem explicada. Com efeito, de modo nenhum me apraz sejam estas
duas passagens comparadas como afins em todos os aspectos. Como se quisesse
certificar aos Efésios acerca de sua adoção na comunidade de Israel, ensina
estar removido o impedimento pelo qual outrora eram barrados. Ele estava nas
cerimônias. Pois os ritos de abluções e sacrifícios, através dos quais os
judeus eram consagrados ao Senhor, segregavam-nos dos gentios. Quem não vê,
porém, que na Epístola aos Colossenses se tange um mistério mais sublime? Aqui,
a contenda é, na verdade, acerca das observâncias mosaicas, às quais os falsos
apóstolos porfiavam por impelir o povo cristão. Mas, da mesma forma que na
Epístola aos Gálatas o Apóstolo conduz essa discussão mais fundo e, de certo
modo, volve-a ao ponto de partida, também assim nesta passagem. Ora, se nos
ritos outra coisa não consideras senão a necessidade de celebrá-los, que
significado teria serem eles chamados “título de dívida” que nos é contrário?
E, igualmente, por que se haveria de fazer consistir quase toda nossa salvação
em sua abolição?161 Por essa razão, a própria matéria reivindica que aqui se
deve considerar algo mais recôndito. Eu, porém, confio haver-lhe alcançado a
genuína compreensão, se contudo se me concede ser verdadeiro o que, em algum
lugar, foi escrito por Agostinho com muita veracidade, ou, antes, o que ele
hauriu das claras palavras do Apóstolo, a saber, haver-se manifestado nas
cerimônias judaicas mais confissão do que expiação de pecados. Pois, que outra
coisa faziam com os sacrifícios, senão confessar-se culpados de morte os que,
em seu lugar, substituíam meios de purificação? Que obtinham com essas
purificações, senão que atestavam ser impuros?
Por isso era repetidamente renovado
por eles o “título de dívida”, não só de sua culposidade, mas também de sua
impureza. Nessa testificação, no entanto, não havia quitação da dívida. Por
essa razão, escreve o Apóstolo que, intervinda, afinal, a morte de Cristo, foi
consumada a redenção das transgressões que permaneciam sob o antigo testamento
[Hb 9.15]. Com justiça, portanto, o Apóstolo chama aos ritos e cerimônias
veterotestamentários “títulos de dívida” contrários aos que os observavam, uma
vez que através deles atestavam abertamente sua condenação e impureza. Nem a
isto se contrapõe o fato de que elestambém fossem participantes conosco da
mesma graça. Pois alcançaram isto em Cristo, não nas cerimônias, o que o
Apóstolo naquela passagemdele distingue, porquanto, então em vigor, obscureciam
sua glória. Concluímos que as cerimônias, consideradas em si mesmas, são
apropriada e convenientemente chamadas “títulos de dívida” que são contrários à
salvação dos homens, embora fossem como que documentos solenes que lhes
atestavam o endividamento. Como quisessem os falsos apóstolos de novo
sujeitar-lhes a Igreja Cristã, Paulo, não sem causa, reinvestigando-lhes mais a
fundo o significado, advertiu aos colossenses no que recairiam se neste modo se
deixassem subjugar-se por elas. Pois, ao mesmo tempo, se privavam do benefício
de Cristo, razão por que, consumada uma vez a expiação eterna, Cristo aboliu
essas observâncias diárias, as quais, eficazes apenas para atestar os pecados,
nada podiam fazer para cancelá-los.
João
Calvino