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segunda-feira, 30 de julho de 2018

O FALSO JURAMENTO É UMA PROFANAÇÃO DO NOME DE DEUS


Uma vez que já entendemos que o Senhor quer que seja inerente em nossos juramentos o culto de seu nome, tanto maior diligência se deve aplicar para que não contenham nem afronta nem menosprezo em vez de culto. Não é uma afronta leve fazer-se por ele falso juramento, donde também na lei se chama isso profanação [Lv 19.12]. Ora, que resta ao Senhor quandose vê despojado de sua verdade? Então deixa de ser Deus. Pois é de fato despojado, quando é constituído sufragador e aprovador do que é falso. Portanto Josué, quando quis forçar Acã à confissão da verdade, insta: Filho meu, dá glória ao Senhor de Israel” [Js 7.19], implicando, obviamente, que o Senhor é gravissimamente ultrajado, se por ele se jura falso.
Nem é de admirar, pois não é por omissão nossa que, de certa forma, não se lhe atribui falsidade ao sagrado nome. Que esta forma de expressão – “dá glória a Deus” – foi usada entre os judeus sempre que alguém era chamado a pronunciar um juramento, é evidente à luz de semelhante invocação de Deus como testemunha de que fazem uso os fariseus no Evangelho de João [9.24]. A este acautelamento nos previnem outras fórmulas que se usam nas Escrituras: “Vive o Senhor” [1Sm 14.39]; “Faça-me isto o Senhor e estas coisas acrescente ele” [1Sm 14.44; 2Sm 3.9; 2Rs 6.31]; “Deus seja testemunha contra a minha alma” [2Co 1.23], que sugerem que não podemos invocar a Deus por testemunha de nossa palavra, sem que roguemos nos seja ele o vingador do falso juramento, se estamos a enganar.

João Calvino

CARÁTER SAGRADO DO JURAMENTO PELO NOME DE DEUS


É preciso considerar, em primeiro lugar, o que é um juramento. De fato, é a invocação de Deus por testemunha para confirmar-se a veracidade de nossa palavra. Entretanto, as imprecações que contêm manifestos insultos a Deus são indignas de que sejam contadas entre os juramentos. Patenteia-se em muitas passagens da Escritura que invocação desta natureza, quando devidamente articulada, é uma expressão de culto divino, como quando Isaías vaticina que os assírios e os egípcios haveriam de ser convocados para uma relação pactual com Israel. “Falarão”, diz ele, “a língua de Canaã e jurarão no nome do Senhor” [Is 19.18], isto é, ao jurarem pelo nome do Senhor, estarão proferindo uma confissão de sua religião. De igual modo, quando fala acerca de estender-se-lhe o reino: “Quem quer que a si se abençoar, se abençoará no Deus dos fiéis; e quem jurar na terra, jurará pelo Deus verdadeiro” [Is 65.16]. Assim, Jeremias: “Se os entendidos”, diz ele, “ensinarem o povo a jurar por meu nome, assim como ensinaram a jurar por Baal, serão edificados no meio de minha casa” [Jr 12.16]. E, com invocarmos o nome do Senhor em testemunho, diz-se, com razão, que estamos atestando nosso reconhecimento de sua divina soberania. Pois, dessa forma, o confessamos ser a eterna e imutável verdade, a quem invocamos não só como a testemunha idônea da verdade acima das demais, mas ainda como seu enunciador único, que pode trazer à luz as coisas escondidas e, ademais, como o conhecedor dos corações. Pois onde falecem os testemunhos dos homens, retrocedemos a Deus como nossa testemunha, especialmente quandose tem de asseverar o que jaz oculto na consciência. Por essa razão, inflama-se acerbamente o Senhor para com aqueles que juram por deuses estranhos e interpreta esse gênero de juramento como prova de manifesta defecção: “Teus filhos me abandonaram e juram por aqueles que não são deuses” [Jr 5.7]. E a gravidade deste delito declara-a pela ameaça das penas: “Exterminarei aqueles que juram pelo nome do Senhor e juram por Milcom” [Sf 1.5].

João Calvino

O TERCEIRO MANDAMENTO

“NÃO TOMARÁS O NOME DO SENHOR, TEU DEUS, EM VÃO” [EX 20.7]

TEOR E APLICAÇÃO DO TERCEIRO MANDAMENTO


A finalidade do mandamento é que Deus quer que a majestade de seu nome nos seja sacrossanta. Logo, a suma será que não a profanemos tratando-o com menosprezo e irreverentemente. A esta injunção restritiva corresponde, em paralelo, o preceito positivo de que nos empenhemos e preocupemos em buscá-la com religiosa reverência. Dessa forma, assim nos convém estar dispostos no pensar e no falar que nada pensemos ou falemos acerca do próprio Deus e de seus mistérios, a não ser reverentemente e com muita sobriedade, de sorte que, em estimando-lhe as obras, nada concebamos a não ser o que lhe é honroso. Estes três pontos, insisto, importa observar não negligentemente: primeiro, que tudo quanto a mente concebe a seu respeito, tudo quanto a língua profere, saiba sua excelência e corresponda à sagrada sublimidade de seu nome, afinal, seja adequado a enaltecer-lhe a magnificência. Segundo, não abusemos, temerária e pervertidamente, de sua santa Palavra e de seus venerandos mistérios, seja a serviço da ambição, seja a serviço da avareza, seja a serviço de nossos divertimentos. Pelo contrário, uma vez que trazem impressa em si a dignidade de seu nome, tenham sempre entre nós sua honra e apreço. Finalmente, não lhe difamemos ou desacreditemos as obras, como contra ele costumam injuriosamente vociferar homens miseráveis; ao contrário, tudo quanto rememoramos como feito por ele, celebremo-lo com os louvores de sabedoria, de justiça e de bondade. Nisto consiste santificar o nome de Deus. Quando se procede de outra maneira, de vão e ímpio abuso se polui ele, porque é subtraído do uso legítimo a que unicamente fora consagrado, e, ainda que em nada mais seja despojado, entretanto de sua dignidade se torna desprezível aos poucos. Ora, se tanto há de mal nesta temerária propensão de abusar improcedentemente do nome divino, muito mais nisto, se a nefários usos se confere, como aqueles que o fazem servir às superstições da necromancia, às imprecações execráveis, aos exorcismos ilícitos e a outros ímpios encantamentos. Mas, neste mandamento se tem em conta, acima de tudo, o juramento, em que é sobremodo detestável o uso pervertido do nome divino, para que daí melhor nos atemorizemos de toda profanação dele, sob qualquer forma. Entretanto, aqui se trata antes do culto de Deus e da reverência de seu nome, contudo não da eqüidade que se deve cultivar entre os homens, daí se evidencia que, em seguida, condenará na segunda tábua o perjúrio e o falso testemunho, com que é agravada a sociedade humana. Ora, seria supérflua repetição se este mandamento tratasse do dever da caridade. Já a própria divisão dos mandamentos também postula isto, porque, como já se disse, não sem razão Deus atribui duas tábuas à sua lei. Donde se conclui que Deus está aqui reivindicando para si este seu direito e preservando a santidade de seu nome, não, porém, a ensinar o que os homens devam aos homens.

João Calvino

TEOR E SENTIDO DA PROMESSA CONTIDA NA CLÁUSULA: “E USA DE MISERICÓRDIA PARA COM MILHARES”


Por outro lado, apresenta-se a promessa de que a misericórdia de Deus haverá de ser propagada a mil gerações, promessa que ocorre nas Escrituras, aliás com freqüência, e é inserida no solene pacto da Igreja: “Eu serei o teu Deus, e de tua semente após ti” [Gn 17.7]. Contemplando isto, Salomão escreve que seriam bemaventurados os filhos dos justos após a morte destes [Pv 20.7], não apenas em razão de sua santa educação, que também ela própria não tem, na verdade, reduzida importância, mas ainda, em decorrência desta bênção prometida no pacto, para que a graça de Deus resida eternamente nas famílias dos piedosos. Daqui há conforto singular para os fiéis, e terror ingente para os ímpios, porque, se também após a morte, a lembrança tanto da justiça quanto da iniqüidade vale tanto diante de Deus, que a maldição deste e a bênção daquele se transmitem à posteridade, muito mais repousarão sobre as próprias cabeças dos que as têm praticado. No entanto, nada impede que a descendência dos ímpios por vezes se volte à prática do bem, a descendência dos fiéis degenere, pois aqui não quis o Legislador fixar uma regra perpétua que anulasse sua eleição. Ora, para conforto do justo e terror do pecador, é suficiente que ela não seja uma declaração vã ou ineficaz, embora nem sempre tenha lugar. Pois, da mesma forma que as penas temporais que são infligidas a uns poucos ímpios são testemunhas da ira divina contra os pecados e do juízo um dia a sobrevir a todos os pecadores, embora muitos passem impunemente até o fim da vida, assim também, quando o Senhor dá um exemplo desta bênção, de sorte que, por causa do pai, contemple o filho com sua misericórdia e benignidade, está a exibir prova de seu constante e perpétuo favor para com seus adoradores. Quando, uma vez, no filho persegue a iniqüidade do pai, Deus está a ensinar que espécie de juízo se reserva a todos os réprobos por suas próprias transgressões, certeza que aqui contemplou acima de tudo. Ademais, recomenda-nos, de passagem, a grandeza de sua misericórdia, que estende por mil gerações, quando somente quatro gerações reservara à punição.

João Calvino

VISITAR DEUS A INIQÜIDADE DOS PAIS NOS FILHOS NÃO EQUIVALE A VIOLAÇÃO DE SUA JUSTIÇA


Verifiquemos, em primeiro lugar, se vingança como essa não se coaduna com a justiça divina. Se a natureza inteira de homens a quem o Senhor não faz dignos da comunicação de sua graça é condenável, a esses sabemos estar preparada a perdição, contudo perecem por sua própria iniqüidade, não por ódio iníquo de Deus. Nem lhes é deixada qualquer desculpa por que à salvação não são ajudados pela graça de Deus a exemplo de outros. Portanto, uma vez que esta punição é aplicada aos ímpios e depravados em vista de suas abominações, assim que suas casas sejam privadas da graça de Deus por muitas gerações, quem haja de intentar incriminação a Deus por causa desta justíssima represália? Mas, sentencia o Senhor, em contraposição, que a pena do pecado paterno não haverá de passar-se ao filho [Ez 18.20]. Observa o de que aqui se trata: os israelitas, como fossem, por longo tempo e persistentemente, acometidos de muitas calamidades, começaram a reiterar o provérbio de que seus pais haviam comido uva verde, embotando assim os dentes dos filhos [Ez 18.2], querendo dizer com isso que, uma vez que seus pais tinham cometido os pecados cujas punições eles, de outra sorte justos e inculpados, tinham de sofrer, mais pela implacável ira de Deus do que por sua moderada severidade. O Profeta, porém, lhes proclama não ser assim, já que são castigados em virtude de suas próprias transgressões, nem se coaduna com a justiça de Deus que um filho justo sofra penalidade em função da maldade de um pai depravado, o que nem se contém no presente dispositivo do mandamento em consideração. Ora, se a visitação acerca da qual aqui se discute se consuma quando o Senhor detrai da família dos ímpios a graça, a luz de sua verdade e os demais recursos que assistem à salvação, nisto mesmo, que dele cegados e abandonados seguem os filhos nas pegadas dos pais, estão a sofrer as maldições divinas em virtude dos delitos paternos. Que, porém, são sujeitos não só às misérias temporais, mas ainda, por fim, à perdição eterna, são por isso punidos pelo justo juízo de Deus, não em razão de pecados alheios, mas em conseqüência da iniqüidade pessoal.

João Calvino

TEOR E SENTIDO DA CLÁUSULA: “QUE VISITA A INIQÜIDADE DOS PAIS NOS FILHOS...”


Impõe-se ver o que Deus quer dizer na ameaça, quando ensina que haverá de “visitar a iniqüidade dos pais nos filhos até a terceira e quarta geração”. Ora, além de ser estranho à eqüidade da justiça divina infligir sobre o inocente o castigo de falta alheia, também Deus mesmo afirma que não consentirá que o filho leve a iniqüidade do pai [Ez 18.20]. E, contudo, esta cláusula não se repete uma vez só, ou, seja, de serem os castigos de faltas avoengas distendidas às gerações futuras. Pois, freqüentemente, Moisés assim lhe dirige a palavra: “Senhor, Senhor, que lanças a iniqüidade dos pais aos filhos até a terceira e quarta geração” [Ex 34.6, 7; Nm 14.18]. De igual modo, Jeremias [32.18]: “Tu que usas de misericórdia com milhares, que retribuis a iniqüidade dos pais ao seio dos filhos depois deles.” Alguns, enquanto penosamente suam em solver este problema, pensam que se deva entender isto apenas de castigos temporais, os quais, se os filhos os mantêm em razão das faltas dos pais, não é absurdo, uma vez que não raro se lhes infligem para a salvação. O que, de fato, é verdadeiro, pois Isaías [39.7] anunciava a Ezequias que seus filhos haveriam de ser despojados do reino e deportados para o exílio, por causa de pecado por ele cometido. As casas de faraó e de Abimeleque são afligi das por causa do agravo feito a Abraão [Gn 12.17; 20.3, 18] – quando, porém, se aplica isto à solução desta questão, é antes subterfúgio do que verdadeira explicação. Ora, aqui e em passagenssemelhantes, estabelece ele punição mais pesada do que se pode fixar dentro dos termos da vida presente. Portanto, assim se deve admitir: que a justa maldição do Senhor pesa não apenas sobre a cabeça do ímpio, mas também sobre toda sua família. Onde esta maldição pesou, que se pode esperar, senão que o pai, destituído do Espírito de Deus, vive mui abominavelmente, e o filho, semelhantemente abandonado pelo Senhor por causa da iniqüidade do pai, segue o mesmo caminho de perdição? Finalmente, o neto e o bisneto, execrável semente de homens abomináveis, após eles se lancem em precipícios?

João Calvino

O SEGUNDO MANDAMENTO PROCLAMA A INEXORÁVEL REAÇÃO DE DEUS CONTRA OS TRANSGRESSORES DESTE PRECEITO


O dispositivo que se acrescenta deve valer não pouco para sacudir-nos a inércia. Ameaça dizendo que ele é o Senhor, o nosso Deus, um Deus cioso de suas prerrogativas, que visita a iniqüidade dos pais nos filhos até a terceira e quarta geração naqueles que lhe aborrecem o nome, mas faz misericórdia para com milhares daqueles que o amam e lhe guardam os preceitos [Ex 20.5, 6]. Isto, na verdade, é exatamente como se estivesse a dizer que só ele é Aquele em quem devemos apegarnos. Para que nos leve a isto, proclama seu poder que não permite que seja impunemente desprezado ou menoscabado. Ocorre aqui, com efeito, no texto hebraico, o nome EL, que se traduz por DEUS. Porque, visto que se deriva da palavra que significa força, para que melhor expressasse o sentido, não hesitei em traduzir também isto ou inseri-lo no texto. Então, enuncia-se como cioso de suas prerrogativas, que não pode admitir parceiro. Finalmente, assevera haver de ser vindicador de sua majestade e glória, se alguém a transferir para criaturas ou para imagens de escultura. Nem o será mediante punição breve ou simples; ao contrário, será tal que se estende aos filhos, netos e bisnetos, os quais, obviamente, serão imitadores da impiedade paterna. De igual modo, exibe também sua perpétua misericórdia e benignidade, em longa posteridade, àqueles que o amam e guardam sua lei. É muito comuma Deus assumir em relação a nós a figura de um marido. Com efeito, a união com que nos vincula a si, quando nos recebe no seio da Igreja, tem o teor de um como que sagrado matrimônio, que importa firmar-se na mútua fidelidade [Ef 5.29-32]. Como ele desempenha integralmente todos os deveres de um esposo fiel e verdadeiro, assim, por sua vez, de nós exige amor e castidade conjugais. Isto é, que não prostituamos nossas almas a Satanás, à concupiscência e aos impuros apetites da carne para serem deles desonradas. Daí, quando censura a apostasia dos judeus, queixa-se de que, perdido o recato, eles se conspurcaram de adultérios [Jr 3.1, 2; Os 2.1-5]. Portanto, como um marido, quanto mais santo é e casto, tanto mais gravemente se incende se vê o coração da esposa a inclinar-se para com um rival, assim o Senhor, que verdadeiramente nos desposou para si, evidencia ser muito ardente sua inconformidade,sempre que é desdenhada a pureza de seu santo matrimônio, somos conspurcados de celerados apetites. Mas, então isto sente especialmente o Senhor, quando oferecemos a outro o culto de sua divina majestade, que conviera ser absolutamente ilibado, ou o corrompemos com alguma superstição, uma vez que, deste modo, não só violamos o compromisso feito no casamento, mas ainda, acenando aos amantes, maculamos o próprio leito conjugal.


João Calvino

quarta-feira, 25 de julho de 2018

O SEGUNDO MANDAMENTO

“NÃO FARÁS PARA TI IMAGEM ESCULPIDA, NEM FIGURA ALGUMA DAS COISAS QUE ESTÃO NO CÉU, ACIMA, OU NA TERRA, EMBAIXO, OU NAS ÁGUAS QUE ESTÃO DEBAIXO DA TERRA. NÃO AS ADORARÁS NEM LHES DARÁS CULTO” [EX 20.4, 5]

 O SEGUNDO MANDAMENTO PRECEITUA O CULTO ESPIRITUAL DE DEUS


Como no mandamento precedente, o Senhor se proclamou ser o Deus único, além do qual nenhum outro deus se deve imaginar ou ter, assim, neste mandamento declara ainda mais explicitamente agora de que natureza é, e com que modalidade de culto deve ser ele honrado, para que não ousemos atribuir-lhe algo sensório.
Portanto, a finalidade deste mandamento é que Deus não quer que seu legítimo culto seja profanado mediante ritos supersticiosos. Por isso, em síntese, ele nos dissuade e afasta totalmente das observâncias materiais insignificantes que nossa mente bronca, em razão de sua crassitude, costuma inventar quando concebe a Deus. E daí nos instrui em relação a seu legítimo culto, isto é, ao culto espiritual e estabelecido por ele mesmo. Assinala, ademais, o que é o mais grosseiro defeito nesta transgressão: a idolatria exterior. Na verdade, são duas as partes deste mandamento. A primeira nos coíbe a imoderação, para que não ousemos sujeitar nossos sentidos, ou representar a Deus com qualquer forma que paire além da compreensão; a segunda veda que adoremos qualquer imagem com o pretexto de religião. Com efeito, enumera, em poucas palavras, todas as formas com que costumava ser representado pelas pessoas profanas e supersticiosas. Por aquelas coisas que estão no céu compreende o sol, a lua e os outros astros, e talvez as aves, da mesma forma que em Deuteronômio [4.17, 19], expressando seu intento, menciona tanto as aves quanto as estrelas. Não teria assinalado isto, se não visse que certos autores aplicam improcedentemente essa referência aos anjos. Dessa forma, deixo de focalizar os demais elementos referidos no preceito porque são em si mesmos evidentes. E ensinamos de forma sobejamente explícita que todas as formas visíveis de Deus, que o homem cogita, se põem diametralmente em conflito com sua natureza; e por isso, tão logo se interpõem os ídolos, corrompe-se e adultera-se a verdadeira religião.

João Calvino

O PRIMEIRO MANDAMENTO: NÃO TERÁS OUTROS DEUSES DIANTE DE MIM


Lançada e firmada solidamente a autoridade de sua lei, Deus enuncia o primeiro mandamento, a saber: que não tenhamos deuses estranhos diante de sua face [Ex 20.3]. O fim deste mandamento é que Deus quer ser o único a ter a preeminência em seu povo e nele exercer seu direito em plena medida. Para que isso aconteça, ordena que estejam longe de nós a impiedade e toda e qualquer superstição, em virtude da qual ou se diminui ou se obscurece a glória de sua divindade. E, pela mesma razão, prescreve que o cultuemos e o adoremos com o verdadeiro zelo da piedade. E a própria simplicidade das palavras soa quase que isto, porquanto não podemos ter Deus sem que, ao mesmo tempo, abracemos as coisas que lhe são próprias. Portanto, o fato de proibir que tenhamos deuses estranhos, com isto significa que não devemos transferir para outrem o que lhe é exclusivo. Mas, ainda que sejam inúmeras as coisas que devemos a Deus, contudo a quatro tópicos se podem muito bem mencionar: Adoração, a que se anexa como um apêndice a obediência espiritual da consciência, confiança, invocação e ação de graças. Chamo adoração a veneração e o culto que qualquer um de nós lhe rende, quando se lhe submete à grandeza. Por isso, não improcedentemente, incluo à adoração a submissão de nossa consciência à sua lei. Confiança é a segurança de nele descansar, em virtude do reconhecimento de seus predicados, quando, atribuindolhe toda sabedoria, justiça, poder, verdade, bondade, reconhecemos que somos bemaventurados somente em sua comunhão. Invocação é o recurso de nossa mente à sua fidelidade e assistência, como ao sustentáculo único, sempre que alguma necessidade insiste. Ação de graças é a gratidão com que se lhe atribui o louvor de todo bem. Como o Senhor não pode consentir que nenhuma destas coisas seja atribuída a alguém além dele,171 assim ordena que tudo seja aplicado inteiramente a ele. Ora, nem será suficiente abster-te de um deus estranho, a não ser que te refreies exatamente doque certos desprezadores nefários costumam fazer, a quem o máximo proveito é ter em zombaria todas as religiões. Com efeito, importa que se anteponha a verdadeira piedade, em virtude da qual as mentesse volvam para o Deus vivo, imbuídas de cujo conhecimento, aspirem a contemplar, a temer, a adorar-lhe a majestade, a abraçar a comunicação de suas bênçãos, a buscar-lhe em tudo a assistência, a reconhecer e celebrar com a confissão do louvor a magnificência de suas obras, como o escopo único em todas as ações da vida. Então, precavenha-se a superstição da impiedade pela qual as mentes alienadas do Deus verdadeiro são arrastadas, para cá e para lá, em busca de deuses vários. Daí, se estamos contentes com o Deus único, recordemos o que foi dito antes: que devem ser alijados para bem longe todos os deuses fictícios, nem se deve cindir o culto que ele reivindica para si com exclusividade, pois que nem é seguro detrair-lhe da glória, mesmo que seja uma mínima porção, quando nele devem permanecer todas e quaisquer coisas que lhe são exclusivas. A frase que segue, diante de minha face, intensifica a indignidade, pela qual Deus é provocado ao ciúme sempre que em seu lugar pomos nossas invenções, tal como se uma esposa despudorada, trazido escancaradamente o amante diante dos olhos do marido, mais lhe incendesse o ânimo. Portanto, quando, por seu manifesto poder e graça, dava Deus prova de que ele atentava para o povo que havia escolhido, para que mais o arredasse do crime de defecção, adverte-o de que não se podem admitir novas deidades sem que seja ele testemunha e observador de seu sacrilégio. Mas, a esta petulância acrescenta-se o máximo de impiedade, a saber, que, em seus desvios, o homem julga poder burlar os olhos de Deus. Em contrapartida, proclama o Senhor que tudo quanto cogitamos, tudo quanto empreendemos, tudo quanto executamos, é posto diante de seus olhos. Portanto, se queremos que ao Senhor agrade aprovar nossa religião, seja nossa consciência isenta até das cogitações mais recônditas de apostasia. Pois ele requer que permaneça íntegra e incorrupta a glória de sua divindade, não só na confissão externa, como também a seus olhos, os quais contemplam até os mais recônditos recessos dos corações.

João Calvino

terça-feira, 24 de julho de 2018

A RELAÇÃO ESPECIAL DO POVO COM SEU DEUS IMPLÍCITA NAS PALAVRAS: “QUE TE TIREI DA TERRA DO EGITO, DA CASA DA SERVIDÃO”


Segue a rememoração do benefício feito ao povo que deve ser tanto mais poderosa para mover-nos, quanto mais detestável é, até mesmo entre os homens: a mancha da ingratidão. Deus estava, então, relembrando a Israel de um benefício, na verdade recente, benefício, porém, que, memorável para sempre em virtude de sua grandeza mirífica, valesse também para a posteridade. Ademais, é um exemplo assaz apropriado à situação presente, pois o Senhor assinala que por isso estes foram libertados de mísera servidão: que, em submissão e em prontidão de obedecer, adorem ao autor da liberdade. Para que nos mantenha no verdadeiro culto exclusivamente seu, Deus costuma também designar-se por certos epítetos em virtude dos quais ele distingue sua santíssima majestade de todos os ídolos e deuses inventados. Ora, como já disse antes, tal é a propensão que temos para com a fatuidade, associada com a temeridade, que tão logo o nome de Deus é referido, nossa mente não pode deixar de cair em alguma vã invenção. Portanto, visto que Deus quer propiciar remédio a este mal, adorna ele sua divindade de títulos seguros, e dessa forma nos cerca como que de determinadas cercas, para que não vaguemos para cá ou para lá, e desatinadamente inventemos para nós algum Deus novo, se deixado de parte o Deus vivo suscitemos um ídolo em seu lugar. Por esta razão, os profetas, sempre que o querem designar apropriadamente, revestem-no e, por assim dizer, o circunscrevem com estas marcas sob as quais se manifestara ao povo israelita. Pois, quando é chamado “o Deus de Abraão” ou “o Deus de Israel” [Ex 3.6], quando é colocado no templo de Jerusalémentre os querubins [Hc 2.20; Sl 80.1; 99.1; Is 37.16], nem estas e formas semelhantes de falar o ligam a um único lugar, ou a um só povo. Ao contrário, foram enunciadas apenas para que os pensamentos dos piedosos estivessem em harmonia com aquele Deus que, em virtude de seu pacto que firmou com Israel, assim se representou para que de modo algum se permita mudar de padrão como esse. Contudo, permaneça isto estabelecido: faz-se menção do livramento de Israel para que os judeus se consagrem mais corajosamente a Deus, que, por direito, a si os reivindica. Nós, porém, para que não pensemos que isso nada tem a ver conosco, nos convém considerar ser a servidão de Israel no Egito um tipo do cativeiro espiritual em que todos nos vemos retidos, até que, libertados pelo poder de seu braço, o celeste vingador nos traslada para o reino da liberdade. Portanto, da mesma forma que, como quisesse recongregar ao culto de seu nome os israelitas outrora transviados, os livrou da intolerável dominação de faraó, pela qual eram oprimidos, assim àqueles a quem hoje professa ser ele o seu Deus, a todos esses já o livra do mortal poder do Diabo, o que foi tipificado naquela servidão corporal. Assim, pois, não deve haver homem algum, cujo coração não se sinta inflamado ao atentar para a lei, promulgada por aquele que é Rei de reis e supremo Monarca, de quem todas as coisas procedem, e para as quais justamente devem ordenar-se e dirigir-se a seu fim. Ninguém, afirmo, há que não deva ser arrebatado a abraçar o Legislador, à observância de cujos mandamentos é ensinado ter sido escolhido de modo especial; de cuja bondade espera não somente a abundância de todas as coisas boas, mas ainda a glória de uma vida imorta; de cujo admirável poder e misericórdia se sabe muito bem ser libertado das fauces da morte .

João Calvino

A RELAÇÃO ESPECIAL DE DEUS COM SEU POVO CONTIDA NA AFIRMAÇÃO: “EU SOU O SENHOR TEU DEUS”


Depois que se mostra ser aquele que tem o direito de ditar ordens, a quem se deve obediência, para que não pareça compelir tão-só pela necessidade, atrai também pela doçura, pronunciando ser o Deus da Igreja. Pois subjaz à expressão uma relação mútua, que se contém na promessa: “Ser-lhes-ei por Deus, eles me serão por povo” [Jr 31.33]. Donde Cristo comprova a imortalidade de Abraão, Isaque e Jacó, ou, seja: que o Senhor se tem atestado ser o Deus deles [Mt 22.32]. Portanto, é exatamente como se falasse assim: “Eu vos escolhi para mim por povo, a quem houvesse de beneficiar não apenas na presente vida, mas ainda houvesse de prodigalizar a bem-aventurança da vida futura.” A que fim, porém, isto contemple, assinala-se em vários lugares na lei. Ora, como o Senhor nos tem por dignos desta misericórdia, que nos associe em consórcio a seu povo, “escolhe-nos”, diz Moisés, “para que lhe sejamos por um povo especial, por um povo santo, e lhe guardemos os mandamentos” [Dt 7.6; 14.2; 26.18, 19]. Donde essa exortação: “Sede santos, porque eu sou santo” [Lv 11.44; 19.2]. Ademais, destas duas preceituações se deriva essa exclamação que está no Profeta: “O filho honra ao pai e o servo honra ao senhor. Se eu sou Senhor, onde está o temor? Se eu sou Pai, onde está o amor?” [Ml 1.6].

João Calvino

O PRIMEIRO MANDAMENTO

EXPOSIÇÃO DOS DEZ MANDAMENTOS


“EU SOU O SENHOR TEU DEUS, QUE TE TIREI DA TERRA DO EGITO, DA CASA DA SERVIDÃO. NÃO TERÁS OUTROS DEUSES DIANTE DE MIM” [EX 20.2, 3]

É-me indiferente se poventura fizeres da primeira sentença parte do primeiro mandamento, ou se a leres em separado, contanto que não me negues servir ela de um como que prefácio à lei em seu todo. Em formulando leis, deve-se tomar cuidado, em primeiro plano, que não sejam anuladas dentro em pouco, em virtude de seu menosprezo. Deus provê, portanto, antes de tudo, que a majestade da lei que está para outorgar não venha, a qualquer tempo, a cair em desprezo. Para assim estabelecê-la, usa de tríplice argumento. A si reivindica o poder e o direito de soberania a fim de que constrinja o povo eleito pela necessidade de obedecer-lhe. Exara a promessa de graça, mercê de cuja doçura alicie o mesmo ao zelo de santidade. Traz à lembrança o benefício conferido, para que acuse aos judeus de ingratidão, caso não lhe respondam à benignidade. No termo SENHOR expressam-lhe a soberania e o legítimo domínio, porquanto, se dele procedemtodas as coisas e nele subsistem, é justo que a ele sejam referidas, assim como o diz Paulo [Rm 11.36]. Desta forma, só por este nome somos suficientemente submetidos ao jugo da divina Majestade, porquanto haveria de ser monstruoso querer evadir-nos à autoridade desse à parte de quem não podemos existir.

João Calvino

segunda-feira, 23 de julho de 2018

OS MANDAMENTOS SÃO DEZ: SUA DIVISÃO COVENIENTE


Com efeito, se bem que a lei inteira foi contida nesses dois tópicos, entretanto, para que removesse todo pretexto de escusa, nosso Deus quis expor mais difusa e explicitadamente em dez mandamentos, quer tudo quanto lhe diz respeito à honra, ao temor, ao amor, quer o que concerne à caridade que, em relação aos homens, nos ordena por amor de si mesmo. Nem é mal aplicado o esforço em diligenciar conhecimento da divisão dos mandamentos, desde que lembres ser coisa desse gênero em que a opinião de cada um deva ser livre, em função da qual não se deve litigar contenciosamente com quem dissinta. Este ponto tem de ser, por certo, por nós necessariamente abordado, para que os leitores não se riam, nem se admirem da divisão que estamos para propor, como se fosse nova e recentemente cogitada. Está além de qualquer dúvida que a lei é dividida em dez preceitos, uma vez que isto se comprova freqüentemente pela autoridade do próprio Deus. Porquanto disputa-se não quanto ao número, mas acerca da maneira de dividir os mandamentos. Aqueles que assim os dividem, que conferem três mandamentos à primeira tábua e relegam os sete restantes à segunda, eliminam do número o mandamento referente às imagens, ou, quando menos, o ocultam debaixo do primeiro, quando não foi dúbia e distintamente expresso pelo Senhor como um mandamento específico, enquanto dividem improcedentemente em dois o décimo, quanto a não cobiçar as coisas do próximo. Acresce que ter sido tal maneira de dividi-los desconhecida em uma era mais pura, logo se perceberá.
Outros enumeram conosco quatro artigos na primeira tábua, mas em lugar do primeiro mandamento colocam a promessa, sem o preceito. Eu, porém, porque, a não ser que seja convencido por razão evidente, tomo as “dez palavras” em Moisés como os Dez Mandamentos, e a mim me parece vê-los dispostos precisamente na mais excelente ordem, permitida a eles sua opinião, seguirei o que a mim mais se recomenda, a saber, que o que esses tomam como sendo o primeiro mandamento, tem o lugar de prefácio à lei como um todo. Seguem, então, os mandamentos: quatro da primeira, seis da segunda tábua, ordem em que serão considerados. Orígenes166 transmitiu esta divisão sem controvérsia, exatamente como fora recebida indistintamente em seu tempo. Sufraga-a também Agostinho167 escrevendo a Bonifácio, o qual conserva esta ordem na enumeração: que se sirva ao Deus único com a obediência da religião, que não se adore um ídolo, que não se tome em vão o nome do Senhor, quando antes falara separadamente acerca do mandamento figurativo do Sábado. Em outro lugar, é verdade, lhe sorri aquela primeira divisão, todavia por uma razão demasiadamente trivial, a saber, que no número ternário (se a primeira tábua se compõe de três mandamentos) tranluz ainda mais o mistério da Trindade. Contudo, nem ali disfarça que, em outros aspectos, que a nossa lhe agrada mais. Além desses, conosco está o autor da obra inacabada acerca de Mateus.168 Josefo,169 sem dúvida com base no consenso comum de seu tempo, atribui cinco mandamentos a cada tábua, o que nisto conflita com a razão: que elimina a distinção de religião e caridade; ademais, é refutado pela autoridade do Senhor, que em Mateus [19.19] coloca no rol da segunda tábua o mandamento de honrar os pais. Ouçamos agora Deus mesmo a falar com suas próprias palavras.

João Calvino

AS DUAS TÁBUAS DA LEI E SUA REFERÊNCIA


Em terceiro lugar, deve considerar-se o que significa a divisão da lei divina em duas tábuas, das quais todos os de espírito saudável proclamarão ter sido feita várias vezes solene menção, não sem causa, nem temerariamente. E à mão nos está a razão por que não nos deixa permanecer incertos acerca desta matéria. Pois Deus assim dividiu sua lei em duas partes, nas quais se contém toda a justiça, que tenha aplicado a primeira aos deveres da religião, que dizem respeito peculiarmente ao culto de sua divina majestade; a outra, aos deveres do amor, que têm a ver com os homens. Seguramente, o primeiro fundamento da justiça é o culto de Deus, derruído o qual, esboroam-se e se dissipam todas as demais partes da justiça, como se porções de um edifício fossem rompidas e desmoronadas. Ora, de que espécie de justiça dirás ser que não acometas aos homens com furtos e pilhagens, se, mercê de ímpio sacrilégio, ao mesmo tempo, de sua glória despojas a majestade de Deus; que não conspurcas teu corpo com fornicação, se com tuas blasfêmias profanas o sacrossanto nome de Deus; que não assassinas a um homem, se te empenhas em matar e extinguir a lembrança de Deus?Em vão, portanto, apregoa-se retidão sem religião. E com fascínio em nada maior do que se, cortada a cabeça, a um corpo mutilado se exiba para exemplar de beleza. A religião não só lhe é a parte principal, mas até mesmo a própria alma da retidão, mercê da qual toda ela tem alento e possui vigor, pois, fora do temor de Deus, nem conservam os homens entre si a eqüidade e a afeição. Conseqüentemente, chamamos ao culto de Deus o princípio e fundamento da justiça, porquanto, uma vez suprimido, tudo quanto de eqüidade, continência, temperança, que entre si os homens exercem, é inútil e frívolo aos olhos de Deus. Dizemo-lo, ademais, ser a fonte e o espírito da retidão, porquanto, se honram a Deus como o Juiz do reto e do iníquo, dele aprendem os homens a viver entre si moderadamente e sem malefício. Daí, na primeira tábua Deus nos instrui em relação à piedade e aos deveres próprios da religião, mediante os quais sua majestade deve ser cultuada; na segunda tábua prescreve como, em razão do temor de seu nome, nos devamos conduzir na sociedade dos homens. Por essa razão, nosso Senhor, como o registram os evangelistas [Mt 22.37, 39; Mc 12. 30, 31; Lc 10.27], coligiu toda a lei, sumariamente, em dois itens: que amemos a Deus de todo o coração, de toda a alma, de todas as forças, e que amemos ao próximo como a nós mesmos. Vês que das duas partes em que encerra toda a lei, uma ele a dirige para com Deus, a outra ele destina aos homens.


João Calvino

O MANDAMENTO, AO EXPRESSAR A VIOLAÇÃO MAIS GRAVE, ACENTUA O QUANTO DEUS ABOMINA A CADA E A QUALQUER PECADO CORRELATO


Entretanto, por que Deus assim deu a entender que quisesse, como que por meios mandamentos, através de sinédoque, mais do que tê-lo expressado em termos claros, embora também outras razões costumem apresentar-se, esta me agrada sobremaneira: visto que a carne sempre diligencia por diluir e revestir de ilusórios pretextos a fealdade do pecado, salvo onde ela é palpável, Deus propôs à guisa de exemplo o que era mais abominável e mais execrando em cada gênero de transgressão, ao ouvirmos o que também enchesse de temor nossa sensibilidade, a fim de que à alma nosimprimisse maior repulsa de todo e qualquer pecado. Isto se nos aplica mais freqüentemente ao estimarmos nossas falhas, pois, se são mais ocultas, as minimizamos. A estes embustes o Senhor dissipa, quando costuma aplicar toda a massa de transgressões a estes cabeçalhos que melhor representam quanto há de abominação em cada gênero de transgressão. Por exemplo, quando são referidos por seus meros designativos, a ira e o ódio não são julgados males especialmente execrandos. Quando, porém, se nos proíbem sob o nome de homicídio, entendemos melhor em quão grande abominação incorrem diante de Deus, de cuja palavra são relegados à categoria de tão horrenda ignomínia. E nós próprios, movidos por seu juízo, costumamos pesar melhor a gravidade dos delitos que antes nos pareciam leves.

João Calvino

O ALCANCE DO MANDAMENTO À LUZ DE SEU PROPÓSITO


O que agora se aborda um tanto obscuramente far-se-á absolutamente claro pela própria reflexão, à medida que se for expondo os mandamentos. Por isso, basta haver assim abordado esta matéria, exceto que o último ponto, que de outra sorte não se entenderia, ou, entendido, talvez de início pudesse parecer absurdo, deverá ser confirmado sucintamente mediante prova específica. Isto não tem necessidade de prova: quando se ordena o bem, proíbe-se o mal que com ele conflita, pois ninguém há que não o conceda. Ordenarem-se também as disposições contrárias, quando se proíbem ações más, admitirá não muito relutantemente a opinião geral. É lugar comumque, de fato, se recomendam as virtudes, quando se condenam os vícios contrários. Nós, porém, postulamos algo mais do que estas expressões significam ordinariamente. Pois, pela virtude contrária ao vício significam os homens, na maioria das vezes, a mera abstenção do vício correspondente. Nós dizemos que ela vai além, a saber, às disposições e atos opostos. E desse modo, neste mandamento, “Não matarás” [Ex 20.13; Dt 5.17], o senso comum dos homens nada mais vislumbrará que se deve abster de todo malefício e do desejo de fazer o mal. Eu afirmo que, além disso, nele se contém que conservemos a vida do próximo com os recursos com que pudermos. E para que não fale sem razão, assim o confirmo: Deus proíbe que se fira ou se faça violência a um irmão injustamente, porque ele quer que sua vida nos seja cara e preciosa. Portanto, requer, ao mesmo tempo, aquelas efusões de amor que podem ser conferidas à sua preservação. E assim vemos como o propósito do mandamento sempre nos desvenda tudo quanto nele ou se nos ordena, ou se nos proíbe fazer.

João Calvino

A CORRETA INTERPRETAÇÃO DOS MANDAMENTOS


Seja-nos esta a segunda observação, a saber, que subsiste sempre nos mandamentos e proibições mais do que se expressa nas simples palavras, o que, entretanto, se deve assim temperar para que não nos seja uma como que régua lésbia, apoiados na qual, torcendo desenfreadamente a Escritura, façamos o que bem quisermos de toda e qualquer coisa. Ora, mediante esta imoderada liberdade de divagar, certos indivíduos fazem com que a alguns se lhes envileça a autoridade da lei, a outros se ponha por terra a esperança de entendê-la. Portanto, se isso pode acontecer, deve-se tomar algum caminho que nos conduza, com passo reto e firme, à vontade de Deus. Impõe-se indagar, digo-o, até onde a interpretação deva ir além dos limites dos termos, de sorte que se ponha à mostra que não é um apêndice de glosas humanas aposto à lei divina, mas o puro e genuíno sentido do Legislador fielmente exposto. Indubitavelmente, em quase todos os mandamentos há tão evidentes sinédoques que, merecidamente, haverá de ser objeto de galhofa quem queira confinar o sentido da lei aos estreitos limites dos termos. Daí, é óbvio que a sóbria interpretação da lei vai além das palavras. Até que ponto, entretanto, permanece obscuro, salvo se alguma norma for estabelecida. Logo, julgo que esta haverá de ser a melhor norma: caso se atente para a razão do mandamento, isto é, que se pondere em relação a cada mandamento por que nos foi ele dado. Por exemplo: todo mandamento ou é imperativo, ou proibitivo. De um e outro tipo a verdade ocorre imediatamente, se lhe contemplamos a razão, ou o propósito. Assim, o propósito do Quinto Mandamento é que se deve render honra àqueles a quem Deus a atribui. Portanto, esta é a síntese do mandamento: ser justo e agradar a Deus que honremos aqueles a quem ele tem prodigalizado algo de excelência; ser-lhe para abominação o desprezo e a contumácia para com eles. Do primeiro mandamento a razão é que somente Deus seja adorado [Ex 20.2, 3; Dt 6.4, 5]. Portanto, a síntese deste mandamento será que a Deus apraz a verdadeira piedade, isto é, o culto de sua divina majestade, e que ele abomina a impiedade. Portanto, deve-se examinar em cada mandamento de que assunto se trata; em seguida, deve buscar-se seu propósito, até que descubramos o que propriamente o Legislador certifique aí agradar-lhe ou desagradar-lhe. Por fim, disto mesmo se deve extrair um arrazoado em contrário, deste modo: se isto agrada a Deus, o contrário lhe desagrada; se isto lhe desagrada, o contrário lhe agrada; se ele ordena isto, então proíbe o contrário; se proíbe isto, então ordena o contrário.

João Calvino

CRISTO REVELA O REAL SENTIDO DA LEI


Quando dizemos ser esse o sentido da lei, não estamos a impor uma interpretação nova, oriunda de nós mesmos; pelo contrário, estamos seguindo a Cristo, o melhor intérprete da lei. Como, pois, os fariseus imbuíram o povo de pervertida opinião, isto é, que cumpria cabalmente a lei quem, por ato externo, nada tivesse praticado contra a lei, Cristo condena este perigosíssimo erro e declara que é adultério a mera olhadela impudica para a mulher [Mt 5.28], e testifica que são homicidas todos quantos odeiam a um irmão, pois se fazem passíveis ao juízo aqueles que porventura sequer tenham concebido ira no íntimo; passiveis ao tribunal aqueles que, murmurando ou vociferando, tenham dado alguma demonstração de espírito ofendido; passíveis à Gehena de fogo aqueles que, com impropérios e invectiva, tenham irrompido em ira franca [Mt 5.22]. Aqueles que não perceberam estas coisas imaginaram a Cristo como outro Moisés, o portador da lei do evangelho, lei esta que cumpria a deficiência da lei mosaica. Donde esse popularizado axioma acerca da perfeição da lei do evangelho: que ela supera, por ampla distância, a antiga lei, o que, de muitos modos, é assaz pemicioso. Ora, do próprio Moisés, quando mais adiante coligirmos a suma de seus preceitos, evidenciar-se-á de quão indigna afronta esta maneira de ver tisna a lei divina. Insinua ela que a santidade dos patriarcas, na verdade, não se distanciou muito da hipocrisia e nos afasta daquela única e perpétua norma de justiça. Mui fácil, porém, é a refutação deste erro, porquanto pensaram que Cristo acrescenta à lei, quando apenas a restaura à sua integridade, enquanto, obscurecida pelas deturpações dos fariseus e maculada por seu fermento, a liberta e purifica.

João Calvino

domingo, 22 de julho de 2018

A LEI NÃO É APENAS FORMAL E EXTERIOR, MAS ESPIRITUAL E INTERIOR. DAÍ RECLAMAR ELA PUREZA DE ESPÍRITO, NÃO MERA OBSERVÂNCIA EXTERNA


Quando, porém, a lei do Senhor nos for exaustivamente explicada, então se confirmará mais convenientemente, afinal, e com mais proveito, o que antes expus acerca de sua função e uso. Antes, porém, que prossigamos a considerar a cada artigo, um a um, vale a pena focalizar previamente apenas aqueles pontos que contribuem a um conhecimento geral dela. De início, seja estabelecido que na lei a vida do homem é amoldada não só à honestidade exterior, mas também à retidão interior e espiritual. Embora ninguém possa negar isto, pouquíssimos, entretanto, disso se apercebem devidamente. Isso acontece porque não atentam para o Legislador, em função de cuja índole se deve aquilatar também a natureza da lei. Se, mediante um decreto, algum rei proíba o fornicar, o matar, o furtar, confesso que não incorrerá em penalidade quem haja apenas concebido na mente o desejo de fornicar, de matar, de furtar, contudo nada destas coisas tem perpetrado. Isto é, visto que a jurisdição do legislador mortal não se estende senão à conduta externa, não se lhe violam as ordenanças senão mediante crimes consumados. Deus, porém, a cujo olho nada foge e que se não atém tanto à aparência externa quanto à pureza de coração, sob a proibição de fornicação, homicídio, furto, proíbe a concupiscência, a ira, o ódio, a cobiça do alheio, o dolo e tudo desse gênero. Ora, uma vez que ele é um legislador espiritual, fala à alma não menos que ao corpo. Mas, o assassínio da alma é a ira e o ódio; o furto, a cobiça má e a avareza; a fornicação, a concupiscência. Também as leis humanas, dirá alguém, atentam para os propósitos e as intenções, não para meros eventos fortuitos. Admito-o, contudo são as intenções que vieram a exteriorizar-se. Ponderam cuidadosamente com que intento se haja cometido todo e qualquer crime; não esquadrinham, porém, os pensamentos secretos. Conseqüentemente, cumpridas terão sido elas quando da transgressão alguém tenha simplesmente retido a mão. Em contrapartida, porém, visto que a lei celestial foi promulgada para nossas almas, necessária lhes é, antes de tudo, a coerção à sua justa observância. Mas, o comum dos homens, ainda quando camufla vigorosamente o desprezo da lei e dispõe os olhos, os pés, as mãos e todas as partes do corpo a certa observância da lei, ao mesmo tempo mantém o coração completamente alienado de toda obediência e julga haver-se desincumbido de suas obrigações, se haja habilidosamente dissimulado aos homens o que faz à vista de Deus. Ouvem: “Não matarás; não adulterarás; não furtarás.” Não desembainham a espada para matança; não ajuntam seus corpos às meretrizes; não lançam as mãos aos bens alheios. Tudo isso está bem até aqui. Mas, de toda a alma, respiram mortes, abrasam-se de volúpia; olham de esguelha para os bens de todos e os devoram de cobiça. Já está, na verdade, ausente o que era o ponto principal da lei. Donde, pergunto, procede tão crassa obtusidade, senão que, deixando de parte o Legislador, acomodam antes os homens a justiça a seu talante?Contra estes, Paulo protesta veementemente, categorizando que “a lei é espiritual” [Rm 7.14], significando com isso que ela não só exige obediência de alma, mente e vontade, mas ainda requerer pureza angelical, pureza que, purgada de todas as sordidezas da carne, de nada saiba senão o espírito.

João Calvino

A LEI MINISTRA A PERFEITA JUSTIÇA A QUE RECLAMA OBEDIÊNCIA INTEGRAL


Ora, visto que o Senhor, ao ensinar a norma da perfeita justiça, sujeitou-lhe todas as partes à sua vontade, nisto se indica nada ser-lhe mais agradável do que a obediência. Isto se deve observar tanto mais diligentemente quanto mais propensa é a intemperança da mente humana a excogitar, constantemente, variadas expressões cultuais, com o intuito de granjear-lhe as boas graças. Pois, em todos os tempos, tem se manifestado esta irreligiosa afetação de religião; por isso, por natureza, inerente na mente humana, ainda hoje se manifesta, porque os homens sempre se comprazem efusivamente em engendrar forma de alcançar justiça à parte da Palavra de Deus. Daí, entre as que se contam comumente como boas obras, lugar mais reduzido ocupam os preceitos da lei, aquela incontável multidão de preceitos humanos ocupando quase todo o espaço. Por outro lado, porém, que outra coisa diligenciou Moisés, senão coibir desregramento desse gênero, quando assim se dirigiu ao povo, após a promulgação da lei: “Observa e ouve todas as coisas que te ordeno, para que te seja bem a ti e a teus filhos depois de ti, para sempre, quando houveres feito o que é bom e agradável diante de teu Deus” [Dt 12.28]. “O que te ordeno, faze somente isto; nada lhe acrescentes, nem diminuas” [Dt 12.32]. E, antes disso, quando testificara que esta lhe era a sabedoria e entendimento perante as demais nações, que havia recebido do Senhor juízos, preceitos e cerimônias, adicionou: “Guarda, portanto, diligentemente, a ti mesmo e a tua alma, para que não te esqueças das palavras que teus olhos viram e para que não venham elas, a qualquer tempo, a apartar-se de teu coração” [Dt 4.9]. Portanto, Deus previa que os israelitas não haveriam de aquietar-se; assim que, recebida a lei, para que em seguida não dessem à luz a novos preceitos, a não ser se drasticamente contidos, declara estar aqui compreendida a perfeição da justiça. Isto devia ser-lhes o mais forte retentáculo. Entretanto, não desistiram dessa ousadia tão terminantemente proibida. E nós? Somos na verdade constringidos por esse mesmo veredicto, porquanto não há dúvida de que esse princípio tenha perpétua validez, pelo qual o Senhor vindicou à sua lei a absoluta doutrina da justiça. Entretanto, não contentes com ela, mourejamos prodigiosamente por inventar e forjar boas obras, umas por sobre as outras. Para curar este mal, o melhorremédio será se este pensamento estiver constantemente assentado: que a lei nos foi divinamente outorgada para nos ensinar a justiça perfeita; que outra justiça nela não se ensina, senão aquela que se exige segundo o requisito da vontade divina; que, portanto, em vão se tentam novas modalidades de obras para ganhar-se o favor de Deus, cujo culto genuíno consta só da obediência; e que, ao contrário, o exercício das boas obras que estão fora da lei de Deus equivale a profanação, que não se deve tolerar, da divina e verdadeira justiça. Com muita verdade, também Agostinho, que denomina a obediência que se presta a Deus, ora de mãe e guardiã de todas as virtudes, ora a fonte de todas elas.

João Calvino

O ALVO REAL DAS PROMESSAS E AMEAÇAS ABUNDANTES NA LEI


Mas, o Senhor não se contenta com haver granjeado reverência para com sua justiça. Para que também nos imbuísse o coração com o amor dessa justiça, ao mesmo tempo também com o ódio da iniqüidade, acrescentou promessas e ameaças. Porque, pois, o olho de nossa mente está demasiadamente enuviado para que seja afetado tão-só pela formosura do bem, o Pai clementíssimo, por sua bondade, nos quis atrair pela doçura das recompensas a amá-lo e buscá-lo. Portanto, declara ele que as virtudes têm nele recompensas, nem haverá de laborar em vão aquele que lhe tenha obedecido aos mandamentos. Proclama, por outro lado, que a injustiça não só lhe é execrável, mas ainda que não haverá de escapar impunemente, porquanto ele próprio haverá de ser o vingador de sua majestade ultrajada. E, para que de todos os modos ao mesmo tempo nos exortem, promete ele tanto as bênçãos da presente vida, quanto a bem-aventurança eterna, à obediência daqueles que tiverem observado os mandamentos; aos transgressores, porém, ameaça não menos com calamidades atuais do que com o suplício da morte eterna. Pois esta promessa: “Aquele que praticar estas coisas viverá por elas” [Lv 18.5]; e, de igual modo, a ameaça correspondente: “A alma que pecar, essa morrerá” [Ez 18.4, 20], sem nenhuma dúvida, quer atentem para a imortalidade, quer para a morte futura e que jamais haverá de findar-se. Todavia, onde quer que se mencione a benevolência ou a ira de Deus, sob aquela se contém a eternidade de vida; sob esta, a perdição eterna.
Mas, das bênçãos e maldições atuais, na lei se enumera longo catálogo [Lv 26.3-39; Dt 28]. E nas penalidades atesta-se, de fato, a suprema pureza de Deus, que não pode tolerar a iniqüidade; nas promessas, porém, além do supremo amor para com a justiça, que não se permite defraudar do devido galardão, atesta-se-lhe também a admirável benignidade. Pois, uma vez que, com tudo o que nos pertence, à majestade lhe somos insolventemente endividados, com ainda mais direito exige ele como dívida tudo quanto requer de nós. Mas, o pagamento de uma dívida não faz jus a recompensa. Logo, Deus se afasta de seu direito quando oferece recompensas por nossos atos de obediência, os quais não se exibem espontaneamente, como se não devidos. Quanto ao proveito que podemos tirar das próprias promessas, já foi exposto em parte, e se verá com mais clareza no devido lugar. Bastante é no presente, se sustentamos e refletimos que nas promessas da lei não há vulgar recomendação da justiça, para que se faça mais evidente quão grandemente agrada a Deus sua observância, e que as penalidades já foram estabelecidas para maior execração da injustiça, para que o pecador, seduzido pelos afagos dos vícios, não esqueça o juízo do Legislador que lhe está preparado.

João Calvino

A LEI CONDUZ INEXORAVELMENTE À CONDENAÇÃO E AO DESESPERO, DE QUE SÓ A MISERICÓRDIA DE DEUS PODE LIVRAR


Quando mediante o ensino da lei tenhamos aproveitado até este ponto, então, para ensinar a mesma convém que desçamos até nosso próprio íntimo, donde, finalmente, infiramos duas coisas. Primeiro, comparando a justiça da lei com nossa vida, verifiquemos estar longe obedecermos à vontade de Deus, e por isso sermos indignos de reter nosso lugar entre suas criaturas, muito menos de sermos contados entre seus filhos. Segundo, considerando nossas forças, verifiquemos que não apenas são elas insuficientes para se cumprir a lei, mas até de todo inexistentes. Disto se segue, necessariamente, quer a desconfiança da virtude própria, quer a ansiedade e vacilação de espírito. Pois, nem pode a consciência suster o peso da iniqüidade sem que logo se lhe anteponha o juízo de Deus. Não se pode, porém, sentir o juízo de Deus sem que suscite ele o horror da morte. De modo semelhante, compelida pelas provas de sua carência de poder, não pode a consciência deixar de cair imediatamente no desespero de suas forças. Um e outro sentimento geram humildade e depreciação própria, de sorte que, ao fim, acontece que o homem, completamente aterrorizado pelo senso da morte eterna, a qual vê a ameaçá-lo como castigo de sua carência de retidão, se volve exclusivamente à misericórdia de Deus como ao único porto de salvação, e assim, sentindo que não é de sua capacidade saldar o que deve à lei, tomado de desespero em seu íntimo, cobre alento para buscar e esperar socorro de outra parte.

João Calvino

TEOR E CONTEÚDO DA LEI MORAL


Agora se torna fácil entender o que se deva aprender da lei, isto é, que Deus, uma vez que é nosso Criador, tem portanto por direito, em relação a nós como Pai e Senhor, e por esta razão de nós se lhe devem glória, reverência, amor, temor. Ademais, também não nos é direito seguirmos para onde quer que o impulso da mente porventura nos impulsione; ao contrário, pendentes de seu arbítrio, devemos firmarnos somente naquilo que lhe seja do agrado. Então, que lhe são aprazíveis a justiça e a retidão, porém abominável a iniqüidade, e por isso, a não ser que por ímpia ingratidão nos queiramos afastar de nosso Criador, necessariamente deve ser por nós cultuada a justiça em toda a vida. Ora, se então, afinal, lhe exibirmos a reverência que de nós se demanda, quando preferirmos sua vontade à nossa, segue-se que outro não lhe é o culto genuíno, senão a observância da justiça, da santidade, da pureza. Nem procede pretextar a desculpa de que nos falta a capacidade, e como devedores arruinados não temos condições de pagar. Pois não é defensável que meçamos a glória de Deus pela medida de nossa capacidade, porquanto, seja o que de fato somos, Aquele permanece sempre semelhante a si mesmo, amigo da justiça, imune à iniqüidade. Tudo quanto de nós exija, visto que ele não pode exigir senão o que é reto, a necessidade permanece de obedecermos por obrigação de natureza. O fato, porém, de não o podermos, isto nos é devido à imperfeição. Ora, se somos mantidos amarrados pela própria concupiscência, em que o pecado reina [Rm 6.12], de sorte que não somos livres para a obediência de nosso Pai, não há por que pleiteemos por defesa essa necessidade, cujo mal não só está dentro de nós, como também deve sernos imputado.

João Calvino

O DECÁLOGO: A DIVINA FORMULAÇÃO DA LEI MORAL


Aqui não julgo ser impróprio inserir os Dez Mandamentos da lei, com uma breve exposição deles. Porquanto, também daqui melhor se evidenciará o que tenho frisado, a saber, o fato de até agora vigorar o culto que Deus uma vez prescreveu. E assim ficará confirmado o segundo ponto que já mensionamos: que os judeus não só dela aprenderam qual era a verdadeira natureza da piedade, mas ainda, ante o horror do juízo, vendo que não tinham força suficiente para cumprir a lei, se viram impulsionados, como que a contra-gosto, ao Mediador. Agora, ao expor a síntese desses elementos que se requerem no verdadeiro conhecimento de Deus, ensinamos que, em razão de sua magnitude, não pode ele ser de nós concebido sem que imediatamente nos vemos diante de sua majestade, a qual nos impele à adoração. Na parte referente ao conhecimento de nós mesmos, estabelecemos este ponto capital: que, vazios da presunção de virtude própria e despidos da confiança de justiça pessoal, pelo contrário quebrantados e esmagados pela consciência de nossa indigência, aprendamos a genuína humildade e reconhecimento de nossa insuficiência. A ambos estes pontos o Senhor atinge em sua lei, onde, em primeiro lugar, vindicado para si o legítimo poder de mandar, nos chama à reverência de sua divina majestade e prescreve em que esteja ela situada e de que é ela constituída. Em segundo lugar, promulgada a regra de sua justiça, a cuja retidão nossa natureza, por ser depravada e deformada, perpetuamente se opõe, e abaixo de cuja perfeição a capacidade nossa, uma vez que é fraca e debilitada para o bem, jaz a longa distância, argúi-nos tanto de insuficiência de poder quanto de carência de justiça. Ora, tudo quanto se deve aprender das duas Tábuas, de certo modo no-los dita e ensina aquela lei interior que anteriormente se disse estar inscrita e como que gravada no coração de todos. Pois nossa consciência não nos deixa dormir um sono perpétuo, destituído de sensibilidade, sem que nos seja testemunha e monitora interior daquilo que devemos a Deus, sem que nos anteponha a diferença do bem e do mal, e assim nos acuse quando nos afastamos de nosso dever.
Entretanto, já que o homem está envolto na escuridão dos erros, mediante essa lei natural ele apenas de leve prova que culto há de ser aceitável a Deus. Na verdade, se afasta de sua correta compreensão por uma longa distância. Além disso, está a tal ponto intumescido de arrogância e ambição, e cegado de amor próprio, que nem ainda é capaz de contemplar-se e como que descer dentro de si mesmo, para que aprenda a humilhar-se e reconhecer a própria indignidade e confessar sua miséria. Por isso, porquanto era necessário, tanto a nosso embotamento quanto a nossa contumácia, proveu-nos o Senhor a lei escrita para que não só atestasse com certeza maior o que era demasiadamente obscuro na lei natural, mas também, sacudido o torpor, a mente e a memória nos ferissem com mais intensa vividez.


João Calvino

CANCELADO O “TÍTULO DE DÍVIDA” REPRESENTADO PELA LEI CERIMONIAL


Um tanto mais difícil é o ponto assinalado por Paulo: “E vós, quando estáveis mortos por vossos delitos e pela incircuncisão de vossa carne, Deus vos vivificou juntamente com ele, perdoando-vos todos os delitos e cancelando o título de dívida que nos era adverso nos decretos, e o removeu do meio, pregando-o na cruz” etc. [Cl 2.13, 14]. Com esta declaração, é como se ele quisesse levar mais adiante a abolição da lei, de modo a não ter nada a ver com os decretos. Erram, portanto, os que tomam isto em referência simplesmente à Lei Moral, cuja inexorável severidade, contudo, interpretam como abolida, e não propriamente a doutrina. Outros, ponderando mais agudamente as palavras de Paulo, discernem que isto diz respeito propriamente à Lei Cerimonial, e mostram que em Paulo o termo decreto significa isto não apenas uma vez. Ora, também aos Efésios assim fala: “Ele é nossa paz, o qual de ambos fez um, abolindo a lei dos mandamentos situada em decretos, para que em si mesmo dos dois criasse um novo homem” [Ef 2.14, 15]. Longe de ser ambíguo, aqui se trata das cerimônias, uma vez que as chama um muro de separação pelo qual os judeus se separavam dos gentios [Ef 2.14]. Portanto, confesso que aqueles primeiros são com justiça criticados por estes segundos, mas também confesso que a mim me parece que a mente do Apóstolo não é por estes ainda bem explicada. Com efeito, de modo nenhum me apraz sejam estas duas passagens comparadas como afins em todos os aspectos. Como se quisesse certificar aos Efésios acerca de sua adoção na comunidade de Israel, ensina estar removido o impedimento pelo qual outrora eram barrados. Ele estava nas cerimônias. Pois os ritos de abluções e sacrifícios, através dos quais os judeus eram consagrados ao Senhor, segregavam-nos dos gentios. Quem não vê, porém, que na Epístola aos Colossenses se tange um mistério mais sublime? Aqui, a contenda é, na verdade, acerca das observâncias mosaicas, às quais os falsos apóstolos porfiavam por impelir o povo cristão. Mas, da mesma forma que na Epístola aos Gálatas o Apóstolo conduz essa discussão mais fundo e, de certo modo, volve-a ao ponto de partida, também assim nesta passagem. Ora, se nos ritos outra coisa não consideras senão a necessidade de celebrá-los, que significado teria serem eles chamados “título de dívida” que nos é contrário? E, igualmente, por que se haveria de fazer consistir quase toda nossa salvação em sua abolição?161 Por essa razão, a própria matéria reivindica que aqui se deve considerar algo mais recôndito. Eu, porém, confio haver-lhe alcançado a genuína compreensão, se contudo se me concede ser verdadeiro o que, em algum lugar, foi escrito por Agostinho com muita veracidade, ou, antes, o que ele hauriu das claras palavras do Apóstolo, a saber, haver-se manifestado nas cerimônias judaicas mais confissão do que expiação de pecados. Pois, que outra coisa faziam com os sacrifícios, senão confessar-se culpados de morte os que, em seu lugar, substituíam meios de purificação? Que obtinham com essas purificações, senão que atestavam ser impuros?
Por isso era repetidamente renovado por eles o “título de dívida”, não só de sua culposidade, mas também de sua impureza. Nessa testificação, no entanto, não havia quitação da dívida. Por essa razão, escreve o Apóstolo que, intervinda, afinal, a morte de Cristo, foi consumada a redenção das transgressões que permaneciam sob o antigo testamento [Hb 9.15]. Com justiça, portanto, o Apóstolo chama aos ritos e cerimônias veterotestamentários “títulos de dívida” contrários aos que os observavam, uma vez que através deles atestavam abertamente sua condenação e impureza. Nem a isto se contrapõe o fato de que elestambém fossem participantes conosco da mesma graça. Pois alcançaram isto em Cristo, não nas cerimônias, o que o Apóstolo naquela passagemdele distingue, porquanto, então em vigor, obscureciam sua glória. Concluímos que as cerimônias, consideradas em si mesmas, são apropriada e convenientemente chamadas “títulos de dívida” que são contrários à salvação dos homens, embora fossem como que documentos solenes que lhes atestavam o endividamento. Como quisessem os falsos apóstolos de novo sujeitar-lhes a Igreja Cristã, Paulo, não sem causa, reinvestigando-lhes mais a fundo o significado, advertiu aos colossenses no que recairiam se neste modo se deixassem subjugar-se por elas. Pois, ao mesmo tempo, se privavam do benefício de Cristo, razão por que, consumada uma vez a expiação eterna, Cristo aboliu essas observâncias diárias, as quais, eficazes apenas para atestar os pecados, nada podiam fazer para cancelá-los.

João Calvino

ABOLIDA A LEI CERIMONIAL NO QUE TANGE A SEU USO


Outra é a situação das cerimônias, as quais foram abolidas não no efeito, mas somente no uso. Mas que, por sua vinda, Cristo lhes pôs fim, nada lhes subtraindo à santidade; ao contrário, ainda mais a recomenda e enaltece. Ora, assim como ao povo antigo teriam as cerimônias oferecido um espetáculo vazio, salvo se ne1as fosse revelado o poder da morte e ressurreição de Cristo, assim também, se elas não cessassem, hoje não seria possível discernir a que propósito foram instituídas. Conseqüentemente, para que a observância prove serem elas não apenas supérfluas, mas até nocivas, Paulo ensina que foram sombras cujo corpo se nos depara em Cristo [Cl 2.17]. Vemos, pois, que em seu cancelamento refulge melhor a verdade do que se continuassem tipificando a Cristo, embora de longe e como que por trás de um véu, o qual já apareceu concretamente. Por isso também, na morte de Cristo, o véu do templo se rasgou em duas partes [Mt 27.51], porque já era vinda à luz a imagem viva e expressa dos bens celestes, que foi iniciada apenas em delineamentos obscuros, como fala o autor da Epístola aos Hebreus [10.1]. A isto se aplica a declaração de Cristo: “A Lei e os Profetas vigoraram até João; a partir de então começou a proclamar-se o reino de Deus” [Lc 16.16]; não que os santos patriarcas fossem privados da pregação que contém a esperança da salvação e da vida eterna, mas, ao contrário, que apenas vislumbraram de longe e sob sombreamentos o que hoje contemplamos em plena luz. Por que, porém, se fez necessário à Igreja de Deus que esses rudimentos subissem mais alto, explica-o João Batista: “Porque a lei foi dada por Moisés, a graça, entretanto, e a verdade foram trazidas por intermédio de Jesus” [Jo 1.17]. Pois, se bem que nos sacrifícios antigos foi, na verdade, prometida a expiação, e a Arca da Aliança foi seguro penhor do paterno favor de Deus, tudo isso teria sido umbroso, salvo se fundado na graça de Cristo, em quem se acha sólida e eterna estabilidade. Contudo, que isto fique estabelecido: ainda que os ritos legais tenham deixado de ser observados, entretanto, por seu próprio fim, melhor se conhece quão grande lhes foi a utilidade antes da vinda de Cristo que, ao abolir seu uso, por sua morte, lhes selou a força e o efeito.

João Calvino

CRISTO NOS LIVRA DA MALDIÇÃO DA LEI


Com efeito, é evidente que as coisas que são ditas por Paulo acerca da abolição da leinão dizem respeito ao ensino propriamente dito; pelo contrário, apenas ao poder de constringir a consciência. Pois a lei não apenas ensina, como também exige imperiosamente o que ordena. Se não é obedecida, aliás, se deixa de ser aplicada em qualquer ponto, ela despede o raio da maldição. Por esta razão, diz o Apóstolo [G1 3.10] que estão sujeitos à maldição todos quantos são das obras da lei, porquanto foi escrito: “Maldito todo aquele que não cumpre todas as coisas prescritas na lei” [Dt 27.26]. E diz que todos quantos estão debaixo da lei não fundamentam sua justiça e no perdão dos pecados, pelo qual ficamos livres do rigor da mesma. Portanto, Paulo ensina que devemos tudo fazer para nos desvencilharmos dos grilhões da lei, se não queremos perecer miseravelmente sob eles. Mas, de que grilhões? Dos grilhões daquela austera e hostil exação que nada remite do supremo direito, nem deixa impune qualquer transgressão. Para redimir-nos desta maldição, digo-o, Cristo se fez maldição por nós. Pois, está escrito: “Maldito todo aquele que é pendurado em um madeiro” [G1 3.13; Dt 21.23]. No capítulo seguinte, é verdade, ensina que Cristo se sujeitou à lei [Gl 4.4], para que redimisse aqueles que estavam debaixo da lei [G1 4.5], porém com o mesmo sentido, pois acrescenta, em seguida: “Para que por adoção recebêssemos o direito de filhos” [G1 4.5]. Por quê?Para que não fôssemos oprimidos por perpétua servidão que mantivesse nossa consciência angustiada pela ansiedade da morte. Entretanto, isto permanece sempre incontestável: nada se deve detrair da autoridade da lei, e que ela deve ser sempre tomada por nós com a mesma veneração e obediência.

João Calvino

A LEI ESTÁ CANCELADA NO TOCANTE À MALDIÇÃO, NÃO A SEU MAGISTÉRIO


Portanto, visto que agora a lei tem em relação aos fiéis o poder de exortação, não aquele poder que ate suas consciências na maldição, mas aquele que, com instar repetidamente, lhes sacode a indolência e lhes espicaça a imperfeição, enquanto querem significar sua libertação da maldição, muitos dizem que a lei (continuo falando da Lei Moral) foi suprimida aos fiéis, não significando que não mais lhes ordene o que é reto, mas somente que não mais lhes é o que lhes era antes, isto é, que não mais lhes condena e destrói a consciência, aterrando-as e confundindo-as. E, sem dúvida, Paulo não ensina obscuramente esse cancelamento da lei. Que esse cancelamento foi também pregado pelo Senhor, disso se evidencia o fato de que ele não refutou aquela opinião de que a lei teria sido abolida por ele, a não ser que essa idéia viesse a prevalecer entre os judeus. Como, porém, não poderia ela emergir ao acaso, sem qualquer pretexto, crê-se que ela se originou de uma falsa interpretação de sua doutrina, exatamente como quase todos os erros costumeiramente se arrimam na verdade. Nós, porém, para que não tropecemos na mesma pedra, distingamos acuradamente o que foi cancelado na lei e o que permanece firme até agora. Quando o Senhor testifica que não viera para abolir a lei, mas para cumpri-la, até que se passem o céu e a terra não deixaria fora da lei um til sem que tudo se cumpra [Mt 5.17, 18], confirma ele sobejamente que, por sua vinda, nada seria detraído da observância da lei. E com razão, uma vez que ele veio antes para este fim, a saber, para que lhe remediasse às transgressões. Por parte de Cristo, portanto, permanece inviolável o ensino da lei, a qual, instruindo, exortando, reprovando, corrigindo, nos plasma e prepara para toda obra boa.

João Calvino

A FUNÇÃO TELEOLÓGICA DA LEI PARA O CRENTE


Certos espíritos ignorantes, ainda que não saibam discernir isso, rejeitam animosamente a Moisés todo e dizem adeus às Duas Tábuas da Lei, porquanto julgam ser obviamente impróprio aos cristãos que se apeguem a uma doutrina que contém a dispensação da morte [2Co 3.7]. Esteja longe de nossa mente esta opinião profana, pois Moisés ensinou com muita propriedade que a lei, que entre os pecadores não pode gerar nada mais que a morte, deve ter entre os santos um uso melhor e superior. Pois, estando para morrer, assim decretou ao povo: “Ponde vosso coração em todas as palavras que eu hoje vos testifico, para que as ordeneis a vossos filhos e lhes ensineis a guardar, a fazer e a cumprir todas as coisas que foram escritas no rolo desta lei, porque não vos foram preceituadas em vão, mas para que, um a um, nelas vivessem” [Dt 32.46, 47]. Ora, se ninguém negará que nela sobressai um modelo absoluto de justiça, ou se impõe não nos haver nenhuma regra de viver bem e retamente, ou dela não nos é seguro afastar-nos. Na verdade, porém, a perpétua e influxível regra de viver não são muitas, mas uma única. Pelo que, o que diz Davi, que o homem justo medita dia e noite na lei do Senhor [Sl 1.2], não se deve entender como a referência a uma só era,157 pois que é muitíssimo aplicável a todas as épocas, uma a uma, até o fim do mundo. Tampouco nos deixemos afastar pelo temor ou nos subtraiamos à sua instrução porque prescreve uma santidade muito mais estrita do que haveremos de experimentar enquanto carregarmos conosco o cárcere de nosso corpo. Pois a lei já não desempenha a nosso respeito a função de um rígido exator, a quem não se satisfaz a não ser que se efetue o requerido. Mas, nesta perfeição a que nos exorta, ela aponta a meta em relação à qual não nos é menos proveitoso porfiar por toda a vida, que é consistente com nosso dever. Nessa porfia, se não falharmos, tudo bem. Com efeito, toda esta vida é um estádio, do qual, corrido o percurso, o Senhor nos concederá que alcancemos aquela meta a que agora nossos esforçosse empenham à distância.

João Calvino

A FUNÇÃO ILUMINADORA DA LEI NA VIDA DOS PRÓPRIOS REGENERADOS


O terceiro uso, que não só é o principal, mas ainda contempla mais de perto ao próprio fim da lei, tem lugar em relação aos fiéis, em cujo coração já vigora e reina o Espírito de Deus. Pois ainda que têm a lei escrita e gravada pelo dedo de Deus no coração [Jr 31.33; Hb l0.16], isto é, têm sido afetados e animados pela direção do Espírito a tal ponto que desejem obedecer a Deus, contudo têm ainda duplo proveito na lei. Pois a lei lhe é o melhor instrumento mediante o qual melhor aprendam cada dia, e com certeza maior, qual é a vontade de Deus, a que aspiram, e se lhe firmem na compreensão. É como se um serviçal qualquer já esteja de tal modo preparado, com todo o empenho do coração, para que seja aprovado por seu patrão, contudo tem necessidade de investigar e observar mais acuradamente os costumes do patrão aos quais se ajuste e acomode. Não que desta necessidade se exime qualquer de nós, pois que ninguém até agora penetrou tanto a sabedoria que não possa da instrução diária da lei fazer novos progressos no conhecimento mais puro da vontade divina. Em segundo lugar, visto que necessitamos não só de ensinamento, mas ainda de exortação, o servo de Deus tirará ainda esta utilidade da lei para que, mediante sua freqüente meditação, seja incitado à obediência, nela seja consolidado e seja impedido de transgredir neste caminho escorregadio. Pois nesta disposição convém que os santos persistam para que, por grande que seja o ânimo com que, segundo o Espírito, se empenham para com a justiça de Deus, entretanto são sempre onerados pela inércia da carne para que não prossigam com a devida prontidão. A esta carne a lei é um chicote no uso do qual, como no caso de um asno estacado e lerdo, sejam estimulados à ação. Até mesmo ao homem espiritual, visto que ainda não foi desvencilhado do fardo da carne, a lei lhe será um acicate constante a não permitir que fique ele inerte. Sem dúvida, Davi atentava para este uso quando celebrava a lei com esses insignes encômios: “A lei do Senhor é imaculada, convertendo almas; as justiças do Senhor são retas, alegrando corações; o preceito do Senhor é luminoso, iluminando os olhos” etc. [Sl 19.8, 9]. Ainda: “Lâmpada para meus pés é tua palavra e luz para minhas veredas” [Sl 119.105]; e as inúmeras outras declarações que seguem em todo esse Salmo. Com efeito, tampouco estas contradizem as declarações paulinas nas quais se mostra não que uso a lei presta aos regenerados, mas, em contrário, o que pode ela de si mesma conferir ao homem. Aqui, porém, o Profeta canta com quão grande utilidade o Senhor instrui pela leitura de sua lei àqueles a quem inspira interiormente a prontidão de obedecer. E não faz apenas menção dos preceitos; pelo contrário, também da promessa da graça que acompanha as coisas, a qual faz com que o que é amargo se torne doce. Pois, o que é menos aprazível que a lei, se, simplesmente importunando e ameaçando, perturbe as almas pelo medo e as angustie pelo pavor? Davi, porém, mostra especialmente que na lei ele havia apreendido ao Mediador, sem o qual não há nenhum desfruto ou doçura.

João Calvino