O que agora se aborda um tanto
obscuramente far-se-á absolutamente claro pela própria reflexão, à medida que
se for expondo os mandamentos. Por isso, basta haver assim abordado esta
matéria, exceto que o último ponto, que de outra sorte não se entenderia, ou,
entendido, talvez de início pudesse parecer absurdo, deverá ser confirmado
sucintamente mediante prova específica. Isto não tem necessidade de prova:
quando se ordena o bem, proíbe-se o mal que com ele conflita, pois ninguém há
que não o conceda. Ordenarem-se também as disposições contrárias, quando se
proíbem ações más, admitirá não muito relutantemente a opinião geral. É lugar
comumque, de fato, se recomendam as virtudes, quando se condenam os vícios
contrários. Nós, porém, postulamos algo mais do que estas expressões significam
ordinariamente. Pois, pela virtude contrária ao vício significam os homens, na
maioria das vezes, a mera abstenção do vício correspondente. Nós dizemos que
ela vai além, a saber, às disposições e atos opostos. E desse modo, neste
mandamento, “Não matarás” [Ex 20.13; Dt 5.17], o senso comum dos homens nada
mais vislumbrará que se deve abster de todo malefício e do desejo de fazer o
mal. Eu afirmo que, além disso, nele se contém que conservemos a vida do
próximo com os recursos com que pudermos. E para que não fale sem razão, assim
o confirmo: Deus proíbe que se fira ou se faça violência a um irmão
injustamente, porque ele quer que sua vida nos seja cara e preciosa. Portanto,
requer, ao mesmo tempo, aquelas efusões de amor que podem ser conferidas à sua
preservação. E assim vemos como o propósito do mandamento sempre nos desvenda
tudo quanto nele ou se nos ordena, ou se nos proíbe fazer.
João
Calvino