Segue a rememoração do benefício feito
ao povo que deve ser tanto mais poderosa para mover-nos, quanto mais detestável
é, até mesmo entre os homens: a mancha da ingratidão. Deus estava, então,
relembrando a Israel de um benefício, na verdade recente, benefício, porém,
que, memorável para sempre em virtude de sua grandeza mirífica, valesse também
para a posteridade. Ademais, é um exemplo assaz apropriado à situação presente,
pois o Senhor assinala que por isso estes foram libertados de mísera servidão:
que, em submissão e em prontidão de obedecer, adorem ao autor da liberdade.
Para que nos mantenha no verdadeiro culto exclusivamente seu, Deus costuma
também designar-se por certos epítetos em virtude dos quais ele distingue sua
santíssima majestade de todos os ídolos e deuses inventados. Ora, como já disse
antes, tal é a propensão que temos para com a fatuidade, associada com a
temeridade, que tão logo o nome de Deus é referido, nossa mente não pode deixar
de cair em alguma vã invenção. Portanto, visto que Deus quer propiciar remédio
a este mal, adorna ele sua divindade de títulos seguros, e dessa forma nos
cerca como que de determinadas cercas, para que não vaguemos para cá ou para
lá, e desatinadamente inventemos para nós algum Deus novo, se deixado de parte
o Deus vivo suscitemos um ídolo em seu lugar. Por esta razão, os profetas,
sempre que o querem designar apropriadamente, revestem-no e, por assim dizer, o
circunscrevem com estas marcas sob as quais se manifestara ao povo israelita.
Pois, quando é chamado “o Deus de Abraão” ou “o Deus de Israel” [Ex 3.6],
quando é colocado no templo de Jerusalémentre os querubins [Hc 2.20; Sl 80.1;
99.1; Is 37.16], nem estas e formas semelhantes de falar o ligam a um único
lugar, ou a um só povo. Ao contrário, foram enunciadas apenas para que os
pensamentos dos piedosos estivessem em harmonia com aquele Deus que, em virtude
de seu pacto que firmou com Israel, assim se representou para que de modo algum
se permita mudar de padrão como esse. Contudo, permaneça isto estabelecido:
faz-se menção do livramento de Israel para que os judeus se consagrem mais
corajosamente a Deus, que, por direito, a si os reivindica. Nós, porém, para
que não pensemos que isso nada tem a ver conosco, nos convém considerar ser a
servidão de Israel no Egito um tipo do cativeiro espiritual em que todos nos
vemos retidos, até que, libertados pelo poder de seu braço, o celeste vingador
nos traslada para o reino da liberdade. Portanto, da mesma forma que, como
quisesse recongregar ao culto de seu nome os israelitas outrora transviados, os
livrou da intolerável dominação de faraó, pela qual eram oprimidos, assim
àqueles a quem hoje professa ser ele o seu Deus, a todos esses já o livra do
mortal poder do Diabo, o que foi tipificado naquela servidão corporal. Assim,
pois, não deve haver homem algum, cujo coração não se sinta inflamado ao
atentar para a lei, promulgada por aquele que é Rei de reis e supremo Monarca,
de quem todas as coisas procedem, e para as quais justamente devem ordenar-se e
dirigir-se a seu fim. Ninguém, afirmo, há que não deva ser arrebatado a abraçar
o Legislador, à observância de cujos mandamentos é ensinado ter sido escolhido
de modo especial; de cuja bondade espera não somente a abundância de todas as
coisas boas, mas ainda a glória de uma vida imorta; de cujo admirável poder e
misericórdia se sabe muito bem ser libertado das fauces da morte .
João
Calvino