O PECADO NECESSÁRIO NÃO É CULPÁVEL; O PECADO
LIVRE É EVITÁVEL
Quanto à servidão do arbítrio humano,
poderia parecer que já disse o bastante, não fossem aqueles que, mercê de um
falso conceito de liberdade, tentam lançá-lo abaixo, alegando em contraposição
determinadas razões propriamente suas com vistas a atacar nossa postulação.
Primeiro, amontoam alguns absurdos com os quais a arrastam ao ódio, como se
também discrepasse do senso comum. Então, investem contra ela com testemunhos
da Escritura. A ambos esses artifícios repeliremos, cada um por sua vez. Se o
pecado, dizem eles, é por necessidade, então deixa de ser pecado; se é
voluntário, então pode ser evitado. Eram estas também as armas de Pelágio para
atacar a Agostinho, de cujos nomes, entretanto, não os queremos gravar por
antecipação, até que tenhamos satisfatoriamente tratado da matéria propriamente
dita. Nego, pois, que o pecado deva ser menos imputado por ser necessário;
nego, por outro lado, que o que inferem seja procedente, a saber, ser ele
evitável, por ser voluntário. Ora, se alguém quer contender com Deus e
furtar-se ao juízo com este pretexto, que não poderia ter agido de outra
maneira, tem a resposta preparada, o que ressaltamos em outro lugar, a saber, o
fato de os homens, convertidos em escravos do pecado, nada poderem querer senão
o mal, não provém da criação, mas da corrupção da natureza. Donde, pois, essa
incapacidade que os ímpios de bom grado invocariam como pretexto, senão que,
por sua livre vontade, Adão se entregou à tirania do Diabo? Daqui, pois, a
corrupção de cujos laços somos mantidos atados, ou, seja, que o primeiro homem
desertou de seu Criador. Se desta deserção são merecidamente tidos todos os
homens por réus, não se julguem escusados pela própria necessidade, em que têm
a mais translúcida causa de sua condenação. E isto expliquei claramente supra,
e um exemplo propus no próprio Diabo, de que se fizesse patente que aquele que
peca por necessidade, peca não menos por vontade; assim como, por outro lado,
nos anjos eleitos, embora a vontade lhes seja indeclinável do bem, entretanto
não deixa de ser vontade, exatamente o que Bernardo também magistralmente
ensina: mais miseráveis somos nós por isto: que a necessidade é voluntária,
necessidade que, todavia, a
tal ponto nos mantém sujeitos a si, que nos tornamos escravos do pecado, como
já referimos. O segundo membro de seu silogismo é vicioso, razão por que
erroneamente salta do voluntário para o livre. Nós, porém, demonstramos supra
que é por ato da vontade o que, entretanto, não está sujeito à livre escolha.
João
Calvino