Certos espíritos ignorantes, ainda que
não saibam discernir isso, rejeitam animosamente a Moisés todo e dizem adeus às
Duas Tábuas da Lei, porquanto julgam ser obviamente impróprio aos cristãos que
se apeguem a uma doutrina que contém
a dispensação da morte [2Co 3.7]. Esteja longe de nossa mente esta
opinião profana, pois Moisés ensinou com muita propriedade que a lei, que entre
os pecadores não pode gerar nada mais que a morte, deve ter entre os santos um
uso melhor e superior. Pois, estando para morrer, assim decretou ao povo:
“Ponde vosso coração em todas as palavras que eu hoje vos testifico, para que
as ordeneis a vossos filhos e lhes ensineis a guardar, a fazer e a cumprir
todas as coisas que foram escritas no rolo desta lei, porque não vos foram
preceituadas em vão, mas para que, um a um, nelas vivessem” [Dt 32.46, 47].
Ora, se ninguém negará que nela sobressai um modelo absoluto de justiça, ou se
impõe não nos haver nenhuma regra de viver bem e retamente, ou dela não nos é
seguro afastar-nos. Na verdade, porém, a perpétua e influxível regra de viver
não são muitas, mas uma única. Pelo que, o que diz Davi, que o homem justo
medita dia e noite na lei do Senhor [Sl 1.2], não se deve entender como a
referência a uma só era,157 pois que é muitíssimo aplicável a todas as épocas,
uma a uma, até o fim do mundo. Tampouco nos deixemos afastar pelo temor ou nos
subtraiamos à sua instrução porque prescreve uma santidade muito mais estrita
do que haveremos de experimentar enquanto carregarmos conosco o cárcere de
nosso corpo. Pois a lei já não desempenha a nosso respeito a função de um
rígido exator, a quem não se satisfaz a não ser que se efetue o requerido. Mas,
nesta perfeição a que nos exorta, ela aponta a meta em relação à qual não nos é
menos proveitoso porfiar por toda a vida, que é consistente com nosso dever.
Nessa porfia, se não falharmos, tudo bem. Com efeito, toda esta vida é um
estádio, do qual, corrido o percurso, o Senhor nos concederá que alcancemos
aquela meta a que agora nossos esforçosse empenham à distância.
João
Calvino