Uma vez que na pessoa de Adão haja
perecido todo o gênero humano, em verdade nada nos aproveitaria aquela
excelência e nobreza de origem que já rememoramos; de modo que, antes, ceda a
maior ignomínia até que Deus, que por obra sua não reconhece a homens poluídos
e corrompidos pelo pecado, se mostre Redentor na pessoa de seu Filho Unigênito.
Portanto, depois que decaímos da vida à morte, inútil seria todo esse
conhecimento de Deus como o Criador, de que temos dissertado, a não ser que
viesse também a fé, pondo diante de nós, em Cristo, a Deus como o Pai. Era
esta, indubitavelmente, a ordem genuína: que a estrutura cósmica nos fosse
escola para aprender-se a piedade, donde se fizesse conduto à vida eterna e à perfeita
felicidade. Mas, após a queda, para onde quer que voltemos os olhos, ocorre por
toda parte a maldição de Deus que, enquanto atinge e envolve com nossa culpa a
criaturas inocentes, necessariamente a alma nos esmaga de desespero. Pois, se
bem que até o presente Deus quer de muitas maneiras se faça manifesto seu
paterno favor para conosco, entretanto da contemplação do mundo não parece
viável percebê-lo como Pai, quando, interiormente, a consciência nos acossa e
mostra estar no pecado justa causa de rejeição, para que Deus não nos considere
ou reconheça por filhos. E não se depara apenas obtusidade, mas também
ingratidão, visto que nem nossa mente, como se tornou cega, percebe o que é
verdadeiro; e, como todos os sentidos nos estão depravados, defraudamos
malignamente a Deus de sua glória. Portanto, impõe-nos recorrer a esta
afirmação de Paulo: “Visto que, na sabedoria de Deus, o mundo não o conheceu
através da sabedoria humana, agradou-lhe salvar aos que crêem mediante a
loucura da pregação” [1Co 1.21]. Paulo chama de sabedoria de Deus a este
magnífico teatro do céu e da terra, saturado de maravilhas incontáveis, de cuja
contemplação se nos impunha sabiamente conhecer a Deus. Mas, porque aí logramos
tão pouco proveito, conclama-nos a fé em Cristo que, em vista de sua aparência
de loucura, é desprezível aos incrédulos. Portanto, embora a pregação da cruz
não se afine à mentalidade humana, é de conveniência, no entanto, abraçá-la
humildemente, se desejamos retornar a Deus, nosso Artífice e Criador, de quem
nos alienamos, para que nos comece ele, de novo, a ser Pai. Sem dúvida que depois da queda do primeiro
homem nenhum conhecimento de Deus valeu para a salvação, sem o Mediador, pois
que Cristo, quando diz que a vida eterna é esta: conhecer ao Pai como o único
Deus verdadeiro e a Jesus Cristo, a quem ele enviou [Jo 17.3], fala não apenas
de seu tempo, pelo contrário compreende a todos os séculos. Portanto, mais
vergonhosa é a imbecilidade desses que escancaram o céu a todos e quaisquer
profanos e incrédulos, sem a graça daquele de quem a Escritura ensina, por toda
a parte, ser a única porta pela qual adentramos à salvação. Porque, se alguém
quiser restringir essa declaração de Cristo à promulgação do evangelho,
imediata é a refutação, porquanto a todos os séculos e a todos os povos tem
sido comum esta convicção: os que estão alienados de Deus não o podem agradar
sem a reconciliação [Ef 4.18], e são declarados malditos [Gl 3.10] e filhos da
ira [Ef 2.3]. Acrescenta a isto o que Cristo respondeu à mulher samaritana:
“Vós adorais o que não conheceis. Nós, porém, adoramos o que conhecemos,
porquanto a salvação provémdos judeus” [Jo 4.22]. Com estas palavras não só
condena como falsas a todas e quaisquer religiões dos povos, mas assinala
também a razão: porque, sob a lei, somente ao povo eleito se prometeu o
Redentor. Donde se segue que jamais culto algum agradou a Deus a não ser aquele
que contemplasse a Cristo. Donde também afirma Paulo que sem Deus permaneceram
todos os povos e privados da esperança de vida [Ef 2.12]. Agora, como João
ensina que desde o início a vida esteve em Cristo [Jo 1.4] e o mundo todo dela
foi privado [Jo 1.10], é necessário retornar a essa fonte. E, por isso, Cristo,
até onde é o Propiciador, declara que ele é a vida [Jo 11.25; 14.6]. E, seguramente,
não a outros senão aos filhos de Deus pertence a herança dos céus [Mt 5.9].
Ademais, é de modo nenhum procedente que se contem no lugar e posição de filhos
quantos não foram enxertados no corpo do Filho Unigênito. E João atesta, com
toda clareza, serem feitos filhos de Deus aqueles que crêem em seu nome [Jo
1.12]. Entretanto, visto que ainda não é meu propósito tratar expressamente da
fé em Cristo, será bastante abordá-la apenas de passagem.
João
Calvino