Enquanto isso, não esqueçamos, porém,
que estes são mui excelentes dons do Espírito Divino, os quais, para o bem
comum do gênero humano, ele dispensa àqueles a quem quer. Ora, se a Bezalel e a
Ooliabe foi indispensável que se instilassem neles, pelo Espírito de Deus, a
inteligência e o conhecimento que se requeriam para a construção do tabernáculo
[Ex 31.2-11; 35.30-35], não é de admirar caso se diga que nos é comunicado
através do Espírito de Deus o conhecimento dessas coisas que são mui relevantes
na vida humana. Nem há por que alguém pergunte: Que os ímpios, que se alienaram
totalmente de Deus, têm a ver com o Espírito? Ora, quando lemos que o Espírito
de Deus habita somente nos fiéis [Rm 8.9], é preciso que se entenda isso como
referência ao Espírito de santificação, através de quem somos consagrados por
templos ao próprio Deus [1Co 3.16]. Entretanto, nem por isso menos preenche,
aciona, vivifica a todas as coisas pelo poder do mesmo Espírito, e isso segundo
a propriedade de cada espécie, a que a atribuiu pela lei da criação. Pois se o
Senhor nos quis assim que fôssemos ajudados pela obra e ministério dos ímpios
na física, na dialética, na matemática e nas demais áreas do saber, façamos uso
delas, para que não soframos o justo castigo de nossa displicência, caso
negligenciemos as dádivas de Deus nelas graciosamente oferecidas. Mas, por
outro lado, para que alguém não julgue ser o homem sumamente ditoso, quando se
lhe concede tão grande poder de compreender a verdade sob os elementos deste
mundo, deve-se, ao mesmo tempo, apreender que não só toda esta capacidade de
compreensão, como também a compreensão que daí resulta, é coisa sem
consistência e sem estabilidadediante de Deus, quando não subjaz nela o sólido
fundamento da verdade. Pois, com muita procedência ensina Agostinho, a quem,
como dissemos, o mestre das Sentenças e os escolásticos foram obrigados a
subscrever: como, após a queda, foram subtraídos ao homem os dons graciosos,
assim também foram corrompidos estes dons naturais que lhe restavam. Não que,
até onde procedem de Deus, possam de si mesmos corromper-se, senão que ao homem
corrompido deixaram de ser puros, de modo que daí não logre ele algum louvor.
João
Calvino